A f� e a raz�o (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o esp�rito humano se eleva para a contempla��o da verdade. Foi Deus quem colocou no cora��o do homem o desejo de conhecer a verdade e, em �ltima an�lise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar tamb�m verdade plena sobre si pr�prio (cf. Ex 33, 18; Sal 2726, 8-9; 6362, 2-3; Jo 14, 8; 1 Jo 3, 2).
INTRODU��O1. Tanto no Oriente como no Ocidente, poss�vel entrever um caminho que, ao longo dos s�culos, levou a humanidade a encontrar-se progressivamente com a verdade e a confrontar-se com ela. um caminho que se realizou nem podia ser de outro modo no �mbito da autoconsci�ncia pessoal: quanto mais o homem conhece a realidade e o mundo, tanto mais se conhece a si mesmo na sua unicidade, ao mesmo tempo que nele se torna cada vez mais premente a quest�o do sentido das coisas e da sua pr�pria exist�ncia. O que chega a ser objecto do nosso conhecimento, torna-se por isso mesmo parte da nossa vida. A recomenda��o conhece-te a ti mesmo estava esculpida no dintel do templo de Delfos, para testemunhar uma verdade basilar que deve ser assumida como regra m�nima de todo o homem que deseje distinguir-se, no meio da cria��o inteira, pela sua qualifica��o de homem �, ou seja, enquanto �conhecedor de si mesmo �.
Ali�s, basta um simples olhar pela hist�ria antiga para ver com toda a clareza como surgiram simultaneamente, em diversas partes da terra animadas por culturas diferentes, as quest�es fundamentais que caracterizam o percurso da exist�ncia humana: Quem sou eu? Donde venho e para onde vou? Porque existe o mal? O que que existir� depois desta vida? Estas perguntas encontram-se nos escritos sagrados de Israel, mas aparecem tamb�m nos Vedas e no Avest�; achamo-las tanto nos escritos de Conf�cio e Lao-Tze, como na prega��o de Tirtankara e de Buda; e assomam ainda quer nos poemas de Homero e nas trag�dias de Eur�pides e S�focles, quer nos tratados filos�ficos de Plat�o e Arist�teles. S�o quest�es que t�m a sua fonte comum naquela exig�ncia de sentido que, desde sempre, urge no cora��o do homem: da resposta a tais perguntas depende efectivamente a orienta��o que se imprime exist�ncia.
2. A Igreja n�o alheia, nem pode s�-lo, a este caminho de pesquisa. Desde que recebeu, no Mist�rio Pascal, o dom da verdade �ltima sobre a vida do homem, ela fez-se peregrina pelas estradas do mundo, para anunciar que Jesus Cristo � o caminho, a verdade e a vida (Jo 14, 6). De entre os v�rios servi�os que ela deve oferecer humanidade, h� um cuja responsabilidade lhe cabe de modo absolutamente peculiar: a diaconia da verdade. (1) Por um lado, esta miss�o torna a comunidade crente participante do esfor�o comum que a humanidade realiza para alcan�ar a verdade, (2) e, por outro, obriga-a a empenhar-se no an�ncio das certezas adquiridas, ciente todavia de que cada verdade alcan�ada apenas mais uma etapa rumo �quela verdade plena que se h�--de manifestar na �ltima revela��o de Deus: Hoje vemos como por um espelho, de maneira confusa, mas ent�o veremos face a face. Hoje conhe�o de maneira imperfeita, ent�o conhecerei exactamente (1 Cor 13, 12).
3. Variados s�o os recursos que o homem possui para progredir no conhecimento da verdade, tornando assim cada vez mais humana a sua exist�ncia. De entre eles sobressai a filosofia, cujo contributo espec�fico colocar a quest�o do sentido da vida e esbo�ar a resposta: constitui, pois, uma das tarefas mais nobres da humanidade. O termo filosofia significa, segundo a etimologia grega, amor sabedoria �. Efectivamente a filosofia nasceu e come�ou a desenvolver-se quando o homem principiou a interrogar-se sobre o porqu� das coisas e o seu fim. Ela demonstra, de diferentes modos e formas, que o desejo da verdade pertence pr�pria natureza do homem. Interrogar-se sobre o porqu� das coisas uma propriedade natural da sua raz�o, embora as respostas, que esta aos poucos vai dando, se integrem num horizonte que evidencia a complementaridade das diferentes culturas onde o homem vive.
A grande incid�ncia que a filosofia teve na forma��o e desenvolvimento das culturas do Ocidente n�o deve fazer-nos esquecer a influ�ncia que a mesma exerceu tamb�m nos modos de conceber a exist�ncia presentes no Oriente. Na realidade, cada povo possui a sua pr�pria sabedoria natural, que tende, como aut�ntica riqueza das culturas, a exprimir-se e a maturar em formas propriamente filos�ficas. Prova da verdade de tudo isto a exist�ncia duma forma basilar de conhecimento filos�fico, que perdura at� aos nossos dias e que se pode constatar nos pr�prios postulados em que as v�rias legisla��es nacionais e internacionais se inspiram para regular a vida social.
4. Deve-se assinalar, por�m, que, por detr�s dum �nico termo, se escondem significados diferentes. Por isso, necess�ria uma explicita��o preliminar. Impelido pelo desejo de descobrir a verdade �ltima da exist�ncia, o homem procura adquirir aqueles conhecimentos universais que lhe permitam uma melhor compreens�o de si mesmo e progredir na sua realiza��o. Os conhecimentos fundamentais nascem da maravilha que nele suscita a contempla��o da cria��o: o ser humano enche-se de encanto ao descobrir-se inclu�do no mundo e relacionado com outros seres semelhantes, com quem partilha o destino. Parte daqui o caminho que o levar�, depois, descoberta de horizontes de conhecimentos sempre novos. Sem tal assombro, o homem tornar-se-ia repetitivo e, pouco a pouco, incapaz de uma exist�ncia verdadeiramente pessoal.
A capacidade reflexiva pr�pria do intelecto humano permite elaborar, atrav�s da actividade filos�fica, uma forma de pensamento rigoroso, e assim construir, com coer�ncia l�gica entre as afirma��es e coes�o org�nica dos conte�dos, um conhecimento sistem�tico. Gra�as a tal processo, alcan�aram-se, em contextos culturais diversos e em diferentes �pocas hist�ricas, resultados que levaram elabora��o de verdadeiros sistemas de pensamento. Historicamente isto gerou muitas vezes a tenta��o de identificar uma �nica corrente com o pensamento filos�fico inteiro. Mas, nestes casos, claro que entra em jogo uma certa �soberba filos�fica �, que pretende arvorar em leitura universal a pr�pria perspectiva e vis�o imperfeita. Na realidade, cada sistema filos�fico, sempre no respeito da sua integridade e livre de qualquer instrumentaliza��o, deve reconhecer a prioridade do pensar filos�fico de que teve origem e ao qual deve coerentemente servir.
Neste sentido, poss�vel, n�o obstante a mudan�a dos tempos e os progressos do saber, reconhecer um n�cleo de conhecimentos filos�ficos, cuja presen�a constante na hist�ria do pensamento. Pense-se, s� como exemplo, nos princ�pios de n�o-contradi��o, finalidade, causalidade, e ainda na concep��o da pessoa como sujeito livre e inteligente, e na sua capacidade de conhecer Deus, a verdade, o bem; pense-se, al�m disso, em algumas normas morais fundamentais que geralmente s�o aceites por todos. Estes e outros temas indicam que, para al�m das correntes de pensamento, existe um conjunto de conhecimentos, nos quais poss�vel ver uma esp�cie de patrim�nio espiritual da humanidade. como se nos encontr�ssemos perante uma filosofia impl�cita, em virtude da qual cada um sente que possui estes princ�pios, embora de forma gen�rica e n�o reflectida. Estes conhecimentos, precisamente porque partilhados em certa medida por todos, deveriam constituir uma esp�cie de ponto de refer�ncia para as diversas escolas filos�ficas. Quando a raz�o consegue intuir e formular os princ�pios primeiros e universais do ser, e deles deduzir correcta e coerentemente conclus�es de ordem l�gica e deontol�gica, ent�o pode-se considerar uma raz�o recta, ou, como era chamada pelos antigos, orth�s logos, recta ratio.
5. A Igreja, por sua vez, n�o pode deixar de apreciar o esfor�o da raz�o na consecu��o de objectivos que tornem cada vez mais digna a exist�ncia pessoal. Na verdade, ela v�, na filosofia, o caminho para conhecer verdades fundamentais relativas exist�ncia do homem. Ao mesmo tempo, considera a filosofia uma ajuda indispens�vel para aprofundar a compreens�o da f� e comunicar a verdade do Evangelho a quantos n�o a conhecem ainda.
Na sequ�ncia de iniciativas an�logas dos meus Predecessores, desejo tamb�m eu debru�ar-me sobre esta actividade peculiar da raz�o. Fa�o-o movido pela constata��o, sobretudo em nossos dias, de que a busca da verdade �ltima aparece muitas vezes ofuscada. A filosofia moderna possui, sem d�vida, o grande m�rito de ter concentrado a sua aten��o sobre o homem. Partindo da�, uma raz�o cheia de interrogativos levou por diante o seu desejo de conhecer sempre mais ampla e profundamente. Desta forma, foram constru�dos sistemas de pensamento complexos, que deram os seus frutos nos diversos �mbitos do conhecimento, favorecendo o progresso da cultura e da hist�ria. A antropologia, a l�gica, as ci�ncias da natureza, a hist�ria, a lingu�stica, de algum modo todo o universo do saber foi abarcado. Todavia, os resultados positivos alcan�ados n�o devem levar a transcurar o facto de que essa mesma raz�o, porque ocupada a investigar de maneira unilateral o homem como objecto, parece ter-se esquecido de que este sempre chamado a voltar-se tamb�m para uma realidade que o transcende. Sem refer�ncia a esta, cada um fica ao sabor do livre arb�trio, e a sua condi��o de pessoa acaba por ser avaliada com crit�rios pragm�ticos baseados essencialmente sobre o dado experimental, na errada convic��o de que tudo deve ser dominado pela t�cnica. Foi assim que a raz�o, sob o peso de tanto saber, em vez de exprimir melhor a tens�o para a verdade, curvou-se sobre si mesma, tornando-se incapaz, com o passar do tempo, de levantar o olhar para o alto e de ousar atingir a verdade do ser. A filosofia moderna, esquecendo-se de orientar a sua pesquisa para o ser, concentrou a pr�pria investiga��o sobre o conhecimento humano. Em vez de se apoiar sobre a capacidade que o homem tem de conhecer a verdade, preferiu sublinhar as suas limita��es e condicionalismos.
Da� provieram v�rias formas de agnosticismo e relativismo, que levaram a investiga��o filos�fica a perder-se nas areias movedi�as dum cepticismo geral. E, mais recentemente, ganharam relevo diversas doutrinas que tendem a desvalorizar at� mesmo aquelas verdades que o homem estava certo de ter alcan�ado. A leg�tima pluralidade de posi��es cedeu o lugar a um pluralismo indefinido, fundado no pressuposto de que todas as posi��es s�o equivalentes: trata-se de um dos sintomas mais difusos, no contexto actual, de desconfian�a na verdade. E esta ressalva vale tamb�m para certas concep��es de vida origin�rias do Oriente: que negam verdade o seu car�cter exclusivo, ao partirem do pressuposto de que ela se manifesta de modo igual em doutrinas diversas ou mesmo contradit�rias entre si. Neste horizonte, tudo fica reduzido a mera opini�o. D� a impress�o de um movimento ondulat�rio: enquanto, por um lado, a raz�o filos�fica conseguiu avan�ar pela estrada que a torna cada vez mais atenta exist�ncia humana e �s suas formas de express�o, por outro tende a desenvolver considera��es existenciais, hermen�uticas ou lingu�sticas, que prescindem da quest�o radical relativa verdade da vida pessoal, do ser e de Deus. Como consequ�ncia, despontaram, n�o s� em alguns fil�sofos mas no homem contempor�neo em geral, atitudes de desconfian�a generalizada quanto aos grandes recursos cognoscitivos do ser humano. Com falsa mod�stia, contentam-se de verdades parciais e provis�rias, deixando de tentar p�r as perguntas radicais sobre o sentido e o fundamento �ltimo da vida humana, pessoal e social. Em suma, esmoreceu a esperan�a de se poder receber da filosofia respostas definitivas a tais quest�es.
6. Credenciada pelo facto de ser deposit�ria da revela��o de Jesus Cristo, a Igreja deseja reafirmar a necessidade da reflex�o sobre a verdade. Foi por este motivo que decidi dirigir-me a v�s, venerados Irm�os no Episcopado, com quem partilho a miss�o de anunciar abertamente a verdade (2 Cor 4, 2), e dirigir-me tamb�m aos te�logos e fil�sofos a quem compete o dever de investigar os diversos aspectos da verdade, e ainda a quantos andam procura duma resposta, para comunicar algumas reflex�es sobre o caminho que conduz verdadeira sabedoria, a fim de que todo aquele que tiver no cora��o o amor por ela possa tomar a estrada certa para a alcan�ar, e nela encontrar repouso para a sua fadiga e tamb�m satisfa��o espiritual.
Tomo esta iniciativa impelido, antes de mais, pela certeza de que os Bispos, como assinala o Conc�lio Vaticano II, s�o testemunhas da verdade divina e cat�lica (3). Por isso, testemunhar a verdade um encargo que nos foi confiado a n�s, os Bispos; n�o podemos renunciar a ele, sem faltar ao minist�rio que recebemos. Reafirmando a verdade da f�, podemos restituir ao homem de hoje uma genu�na confian�a nas suas capacidades cognoscitivas e oferecer filosofia um est�mulo para poder recuperar e promover a sua plena dignidade.
H� um segundo motivo que me induz a escrever estas reflex�es Na carta enc�clica Veritatis splendor, chamei a aten��o para algumas verdades fundamentais da doutrina cat�lica que, no contexto actual, correm o risco de serem deformadas ou negadas �. (4) Com este novo documento, desejo continuar aquela reflex�o, concentrando a aten��o precisamente sobre o tema da verdade e sobre o seu fundamento em rela��o com a f�. De facto, n�o se pode negar que este per�odo, de mudan�as r�pidas e complexas, deixa sobretudo os jovens, a quem pertence e de quem depende o futuro, na sensa��o de estarem privados de pontos de refer�ncia aut�nticos. A necessidade de um alicerce sobre o qual construir a exist�ncia pessoal e social faz-se sentir de maneira premente, principalmente quando se obrigado a constatar o car�cter fragment�rio de propostas que elevam o ef�mero ao n�vel de valor, iludindo assim a possibilidade de se alcan�ar o verdadeiro sentido da exist�ncia. Deste modo, muitos arrastam a sua vida quase at� borda do precip�cio, sem saber o que os espera. Isto depende tamb�m do facto de, �s vezes, quem era chamado por voca��o a exprimir em formas culturais o fruto da sua reflex�o, ter desviado o olhar da verdade, preferindo o sucesso imediato ao esfor�o duma paciente investiga��o sobre aquilo que merece ser vivido. A filosofia, que tem a grande responsabilidade de formar o pensamento e a cultura atrav�s do apelo perene busca da verdade, deve recuperar vigorosamente a sua voca��o origin�ria. por isso que senti a necessidade e o dever de intervir sobre este tema, para que, no limiar do terceiro mil�nio da era crist�, a humanidade tome consci�ncia mais clara dos grandes recursos que lhe foram concedidos, e se empenhe com renovada coragem no cumprimento do plano de salva��o, no qual est� inserida a sua hist�ria.
CAP�TULO I7. Na base de toda a reflex�o feita pela Igreja, est� a consci�ncia de ser deposit�ria duma mensagem, que tem a sua origem no pr�prio Deus (cf. 2 Cor 4, 1-2). O conhecimento que ela prop�e ao homem, n�o prov�m de uma reflex�o sua, nem sequer da mais alta, mas de ter acolhido na f� a palavra de Deus (cf. 1 Tes 2, 13). Na origem do nosso ser crentes existe um encontro, �nico no seu g�nero, que assinala a abertura de um mist�rio escondido durante tantos s�culos (cf. 1 Cor 2, 7; Rom 16, 25-26), mas agora revelado: Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-Se a Si mesmo e dar a conhecer o mist�rio da sua vontade (cf. Ef 1, 9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, t�m acesso ao Pai no Esp�rito Santo e se tornam participantes da natureza divina �. (5) Trata-se de uma iniciativa completamente gratuita, que parte de Deus e vem ao encontro da humanidade para a salvar. Enquanto fonte de amor, Deus deseja dar-Se a conhecer, e o conhecimento que o homem adquire d'Ele leva plenitude qualquer outro conhecimento verdadeiro que a sua mente seja capaz de alcan�ar sobre o sentido da pr�pria exist�ncia.
8. Retomando quase literalmente a doutrina presente na constitui��o Dei Filius do Conc�lio Vaticano I e tendo em conta os princ�pios propostos pelo Conc�lio de Trento, a constitui��o Dei Verbum do Vaticano II continuou aquele caminho plurissecular de compreens�o da f�, reflectindo sobre a Revela��o luz da doutrina b�blica e de toda a tradi��o patr�stica. No primeiro Conc�lio do Vaticano, os Padres tinham sublinhado o car�cter sobrenatural da revela��o de Deus. A cr�tica racionalista que ent�o se fazia sentir contra a f�, baseada em teses erradas mas muito difusas, insistia sobre a nega��o de qualquer conhecimento que n�o fosse fruto das capacidades naturais da raz�o. Isto obrigara o Conc�lio a reafirmar vigorosamente que, al�m do conhecimento da raz�o humana, por sua natureza, capaz de chegar ao Criador, existe um conhecimento que peculiar da f�. Este conhecimento exprime uma verdade que se funda precisamente no facto de Deus que Se revela, e uma verdade cert�ssima porque Deus n�o Se engana nem quer enganar. (6)
9. Por isso, o Conc�lio Vaticano I ensina que a verdade alcan�ada pela via da reflex�o filos�fica e a verdade da Revela��o n�o se confundem, nem uma torna a outra sup�rflua: Existem duas ordens de conhecimento, diversas n�o apenas pelo seu princ�pio, mas tamb�m pelo objecto. Pelo seu princ�pio, porque, se num conhecemos pela raz�o natural, no outro fAzamo-lo por meio da f� divina; pelo objecto, porque, al�m das verdades que a raz�o natural pode compreender, �-nos proposto ver os mist�rios escondidos em Deus, que s� podem ser conhecidos se nos forem revelados do Alto �. (7) A f�, que se fundamenta no testemunho de Deus e conta com a ajuda sobrenatural da gra�a, pertence efectivamente a uma ordem de conhecimento diversa da do conhecimento filos�fico. De facto, este assenta sobre a percep��o dos sentidos, sobre a experi�ncia, e move-se apenas com a luz do intelecto. A filosofia e as ci�ncias situam-se na ordem da raz�o natural, enquanto a f�, iluminada e guiada pelo Esp�rito, reconhece na mensagem da salva��o a plenitude de gra�a e de verdade (cf. Jo 1, 14) que Deus quis revelar na hist�ria, de maneira definitiva, por meio do seu Filho Jesus Cristo (cf. 1 Jo 5, 9; Jo 5, 31-32).
10. No Conc�lio Vaticano II, os Padres, fixando a aten��o sobre Jesus revelador, ilustraram o car�cter salv�fico da revela��o de Deus na hist�ria e exprimiram a sua natureza do seguinte modo: Em virtude desta revela��o, Deus invis�vel (cf. Col 1, 15; 1 Tim 1, 17), na riqueza do seu amor, fala aos homens como amigos (cf. Ex 33, 11; Jo 15, 14-15) e convive com eles (cf. Bar 3, 38), para os convidar e admitir comunh�o com Ele. Esta economia da Revela��o realiza-se por meio de ac��es e palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na hist�ria da salva��o, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mist�rio nelas contido. Por�m, a verdade profunda tanto a respeito de Deus como a respeito da salva��o dos homens manifesta-se-nos, por esta Revela��o, em Cristo, que simultaneamente o mediador e a plenitude de toda a revela��o �. (8)
11. Assim, a revela��o de Deus entrou no tempo e na hist�ria. Mais, a encarna��o de Jesus Cristo realiza-se na plenitude dos tempos (Gal 4, 4). dist�ncia de dois mil anos deste acontecimento, sinto o dever de reafirmar intensamente que, no cristianismo, o tempo tem uma import�ncia fundamental �. (9) Com efeito, nele que tem lugar toda a obra da cria��o e da salva��o, e sobretudo merece destaque o facto de que, com a encarna��o do Filho de Deus, vivemos e antecipamos desde j� aquilo que se seguir� ao fim dos tempos (cf. Heb 1, 2).
A verdade que Deus confiou ao homem a respeito de Si mesmo e da sua vida insere-se, portanto, no tempo e na hist�ria. Sem d�vida, aquela foi pronunciada uma vez por todas no mist�rio de Jesus de Nazar�. Afirma-o, com palavras muito expressivas, a constitui��o Dei Verbum: Depois de ter falado muitas vezes e de muitos modos pelos profetas, falou-nos Deus nestes nossos dias, que s�o os �ltimos, atrav�s de seu Filho (Heb 1, 1-2). Com efeito, enviou o seu Filho, isto �, o Verbo eterno, que ilumina todos os homens, para habitar entre os homens e manifestar-lhes a vida �ntima de Deus (cf. Jo 1, 1-18). Jesus Cristo, Verbo feito carne, enviado como homem para os homens, "fala, portanto, as palavras de Deus" (Jo 3, 34) e consuma a obra de salva��o que o Pai Lhe mandou realizar (cf. Jo 5, 36; 17, 4). Por isso, Ele v�-l'O a Ele ver o Pai (cf. Jo 14, 9) �, com toda a sua presen�a e manifesta��o da sua pessoa, com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa ressurrei��o, e enfim, com o envio do Esp�rito de verdade, completa totalmente e confirma com o testemunho divino a Revela��o �. (10)
Assim, a hist�ria constitui um caminho que o Povo de Deus h�-de percorrer inteiramente, de tal modo que a verdade revelada possa exprimir em plenitude os seus conte�dos, gra�as ac��o incessante do Esp�rito Santo (cf. Jo 16, 13). Ensina-o tamb�m a constitui��o Dei Verbum, quando afirma que a Igreja, no decurso dos s�culos, tende continuamente para a plenitude da verdade divina, at� que nela se realizem as palavras de Deus �. (11)
12. A hist�ria torna-se, assim, o lugar onde podemos constatar a ac��o de Deus em favor da humanidade. Ele vem ter connosco, servindo-Se daquilo que nos mais familiar e mais f�cil de verificar, ou seja, o nosso contexto quotidiano, fora do qual n�o conseguir�amos entender-nos.
A encarna��o do Filho de Deus permite ver realizada uma s�ntese definitiva que a mente humana, por si mesma, nem sequer poderia imaginar: o Eterno entra no tempo, o Tudo esconde-se no fragmento, Deus assume o rosto do homem. Deste modo, a verdade expressa na revela��o de Cristo deixou de estar circunscrita a um restrito �mbito territorial e cultural, abrindo-se a todo o homem e mulher que a queira acolher como palavra definitivamente v�lida para dar sentido exist�ncia. Agora todos t�m acesso ao Pai, em Cristo; de facto, com a sua morte e ressurrei��o, Ele concedeu-nos a vida divina que o primeiro Ad�o tinha rejeitado (cf. Rom 5, 12-15). Com esta Revela��o, oferecida ao homem a verdade �ltima a respeito da pr�pria vida e do destino da hist�ria: Na realidade, o mist�rio do homem s� no mist�rio do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente �, afirma a constitui��o Gaudium et spes. (12) Fora desta perspectiva, o mist�rio da exist�ncia pessoal permanece um enigma insol�vel. Onde poderia o homem procurar resposta para quest�es t�o dram�ticas como a dor, o sofrimento do inocente e a morte, a n�o ser na luz que dimana do mist�rio da paix�o, morte e ressurrei��o de Cristo?
2. A raz�o perante o mist�rio13. Entretanto, n�o se pode esquecer que a Revela��o permanece envolvida no mist�rio. Jesus, com toda a sua vida, revela seguramente o rosto do Pai, porque Ele veio para manifestar os segredos de Deus; (13) e contudo, o conhecimento que possu�mos daquele rosto, est� marcado sempre pelo car�cter parcial e limitado da nossa compreens�o. Somente a f� permite entrar dentro do mist�rio, proporcionando uma sua compreens�o coerente.
O Conc�lio ensina que, a Deus que revela, devida a obedi�ncia da f� �. (14) Com esta breve mas densa afirma��o, indicada uma verdade fundamental do cristianismo. Diz-se, em primeiro lugar, que a f� uma resposta de obedi�ncia a Deus. Isto implica que Ele seja reconhecido na sua divindade, transcend�ncia e liberdade suprema. Deus que Se d� a conhecer na autoridade da sua transcend�ncia absoluta, traz consigo tamb�m a credibilidade dos conte�dos que revela. Pela f�, o homem presta assentimento a esse testemunho divino. Isto significa que reconhece plena e integralmente a verdade de tudo o que foi revelado, porque o pr�prio Deus que o garante. Esta verdade, oferecida ao homem sem que ele a possa exigir, insere-se no horizonte da comunica��o interpessoal e impele a raz�o a abrir-se a esta e a acolher o seu sentido profundo. por isso que o acto pelo qual nos entregamos a Deus, sempre foi considerado pela Igreja como um momento de op��o fundamental, que envolve a pessoa inteira. Intelig�ncia e vontade p�em em ac��o o melhor da sua natureza espiritual, para consentir que o sujeito realize um acto no pleno exerc�cio da sua liberdade pessoal. (15) Na f�, portanto, n�o basta a liberdade estar presente, exige-se que entre em ac��o. Mais, a f� que permite a cada um exprimir, do melhor modo, a sua pr�pria liberdade. Por outras palavras, a liberdade n�o se realiza nas op��es contra Deus. Na verdade, como poderia ser considerado um uso aut�ntico da liberdade, a recusa de se abrir �quilo que permite a realiza��o de si mesmo? No acreditar que a pessoa realiza o acto mais significativo da sua exist�ncia; de facto, nele a liberdade alcan�a a certeza da verdade e decide viver nela.
Em aux�lio da raz�o, que procura a compreens�o do mist�rio, v�m tamb�m os sinais presentes na Revela��o. Estes servem para conduzir mais longe a busca da verdade e permitir que a mente possa autonomamente investigar inclusive dentro do mist�rio. De qualquer modo, se, por um lado, esses sinais d�o maior for�a raz�o, porque lhe permitem pesquisar dentro do mist�rio com os seus pr�prios meios, de que ela justamente se sente ciosa, por outro lado, impelem-na a transcender a sua realidade de sinais para apreender o significado ulterior de que eles s�o portadores. Portanto, j� h� neles uma verdade escondida, para a qual encaminham a mente e da qual esta n�o pode prescindir sem destruir o pr�prio sinal que lhe foi proposto.
Chega-se, assim, ao horizonte sacramental da Revela��o e de forma particular ao sinal eucar�stico, onde a uni�o indivis�vel entre a realidade e o respectivo significado permite identificar a profundidade do mist�rio. Na Eucaristia, Cristo est� verdadeiramente presente e vivo, actua pelo seu Esp�rito, mas, como justamente diz S. Tom�s, nada v�s nem compreendes, mas t'o afirma a f� mais viva, para al�m das leis da Terra. Sob esp�cies diferentes, que n�o passam de sinais, que est� o dom de Deus �. (16) Temos um eco disto mesmo nas seguintes palavras do fil�sofo Pascal: Como Jesus Cristo passou despercebido no meio dos homens, assim a sua verdade permanece, entre as opini�es comuns, sem diferen�a exterior. O mesmo se d� com a Eucaristia relativamente ao p�o comum �.(17)
Em resumo, o conhecimento da f� n�o anula o mist�rio; torna-o apenas mais evidente e apresenta-o como um facto essencial para a vida do homem: Cristo Senhor, na pr�pria revela��o do mist�rio do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua voca��o sublime �, (18) que participar no mist�rio da vida trinit�ria de Deus. (19)
14. A doutrina do primeiro e segundo Conc�lio do Vaticano abre um horizonte verdadeiramente novo tamb�m ao saber filos�fico. A Revela��o coloca dentro da hist�ria um ponto de refer�ncia de que o homem n�o pode prescindir, se quiser chegar a compreender o mist�rio da sua exist�ncia; mas, por outro lado, este conhecimento apela constantemente para o mist�rio de Deus que a mente n�o consegue abarcar, mas apenas receber e acolher na f�. Entre estes dois momentos, a raz�o possui o seu espa�o peculiar que lhe permite investigar e compreender, sem ser limitada por nada mais que a sua finitude ante o mist�rio infinito de Deus.
A Revela��o introduz, portanto, na nossa hist�ria uma verdade universal e �ltima que leva a mente do homem a nunca mais se deter; antes, impele-a a ampliar continuamente os espa�os do pr�prio conhecimento at� sentir que realizou tudo o que estava ao seu alcance, sem nada descurar. Ajuda-nos, nesta reflex�o, uma das intelig�ncias mais fecundas e significativas da hist�ria da humanidade, qual obrigatoriamente fazem refer�ncia a filosofia e a teologia: Santo Anselmo. Na sua obra, Proslogion, o Arcebispo de Cantu�ria exprime-se assim: Detendo-me com frequ�ncia e aten��o a pensar neste problema, sucedia umas vezes que me parecia estar para agarrar o que buscava, outras vezes, pelo contr�rio, furtava-se completamente ao meu pensamento; at� que finalmente, desesperado de o poder achar, decidi deixar de procurar algo que me era imposs�vel encontrar. Mas, quando quis afastar de mim tal pensamento para que a sua ocupa��o da minha mente n�o me alheasse de outros problemas de que podia tirar algum proveito, foi ent�o que come�ou a apresentar-se cada vez mais teimoso. (...) Mas, pobre de mim, um dos pobres filhos de Eva, longe de Deus, o que que comecei a fazer e o que que consegui? O que que visava e a que ponto cheguei? A que que aspirava e por que que suspiro? (...) Senhor, V�s n�o sois apenas algo acerca do qual n�o se pode pensar nada de maior (non solum es quo maius cogitari nequit), mas sois maior de tudo o que se possa pensar (quiddam maius quam cogitari possit) (...). Se n�o f�sseis o que sois, poder-se-ia pensar algo maior do que V�s, mas isso imposs�vel �. (20)
15. A verdade da revela��o crist�, que se encontra em Jesus de Nazar�, permite a quemquer que seja perceber o mist�rio da pr�pria vida. Enquanto verdade suprema, ao mesmo tempo que respeita a autonomia da criatura e a sua liberdade, obriga-a a abrir-se transcend�ncia. Aqui, a rela��o entre liberdade e verdade atinge o seu m�ximo grau, podendo-se compreender plenamente esta palavra do Senhor: Conhecereis a verdade e a verdade libertar-vos-� (Jo 8, 32).
A revela��o crist� a verdadeira estrela de orienta��o para o homem, que avan�a por entre os condicionalismos da mentalidade imanentista e os reducionismos duma l�gica tecnocr�tica; a �ltima possibilidade oferecida por Deus, para reencontrar em plenitude aquele projecto primordial de amor que teve in�cio com a cria��o. Ao homem ansioso de conhecer a verdade se ainda capaz de ver para al�m de si mesmo e levantar os olhos acima dos seus pr�prios projectos �-lhe concedida a possibilidade de recuperar a genu�na rela��o com a sua vida, seguindo a estrada da verdade. Podem-se aplicar a esta situa��o as seguintes palavras do Deuteron�mio: A lei que hoje te imponho n�o est� acima das tuas for�as nem fora do teu alcance. N�o est� no c�u, para que digas: "Quem subir� por n�s ao c�u e no-la ir� buscar?" N�o est� t�o pouco do outro lado do mar, para que digas: "Quem atravessar� o mar para no-la buscar e no-la fazer ouvir para que a observemos?" N�o, ela est� muito perto de ti: est� na tua boca e no teu cora��o; e tu podes cumpri-la (30, 11-14). Temos um eco deste texto no famoso pensamento do fil�sofo e te�logo Santo Agostinho: Noli foras ire, in te ipsum redi. In interiore homine habitat veritas �. (21)
� luz destas considera��es, imp�e-se uma primeira conclus�o: a verdade que a Revela��o nos d� a conhecer n�o o fruto maduro ou o ponto culminante dum pensamento elaborado pela raz�o. Pelo contr�rio, aquela apresenta-se com a caracter�stica da gratuidade, obriga a pens�-la, e pede para ser acolhida, como express�o de amor. Esta verdade revelada a presen�a antecipada na nossa hist�ria daquela vis�o �ltima e definitiva de Deus, que est� reservada para quantos acreditam n'Ele ou O procuram de cora��o sincero. Assim, o fim �ltimo da exist�ncia pessoal objecto de estudo quer da filosofia, quer da teologia. Embora com meios e conte�dos diversos, ambas apontam para aquele caminho da vida (Sal 1615, 11) que, segundo nos diz a f�, tem o seu termo �ltimo de chegada na alegria plena e duradoura da contempla��o de Deus Uno e Trino.
CAP�TULO II1. A sabedoria sabe e compreende todas as coisas� (Sab9, 11)
16. Qu�o profunda seja a liga��o entre o conhecimento da f� e o da raz�o, j� a Sagrada Escritura no-lo indica com elementos de uma clareza surpreendente. Comprovam-no sobretudo os Livros Sapienciais. O que impressiona na leitura, feita sem preconceitos, dessas p�ginas da Sagrada Escritura o facto de estes textos conterem n�o apenas a f� de Israel, mas tamb�m o tesouro de civiliza��es e culturas j� desaparecidas. Como se de um des�gnio particular se tratasse, o Egipto e a Mesopot�mia fazem ouvir novamente a sua voz, e alguns tra�os comuns das culturas do Antigo Oriente ressurgem nestas p�ginas ricas de intui��es singularmente profundas.
N�o por acaso que o autor sagrado, ao querer descrever o homem s�bio, o apresenta como aquele que ama e busca a verdade: Feliz o homem que constante na sabedoria, e que discorre com a sua intelig�ncia; que repassa no seu cora��o os caminhos da sabedoria, e que penetra no conhecimento dos seus segredos; vai atr�s dela como quem lhe segue o rasto, e permanece nos seus caminhos; olha pelas suas janelas, e escuta �s suas portas; repousa junto da sua morada, e fixa um pilar nas suas paredes; levanta a sua tenda junto dela, e estabelece ali agrad�vel morada; coloca os seus filhos debaixo da sua protec��o, e ele mesmo morar� debaixo dos seus ramos; sua sombra estar� defendido do calor, e repousar� na sua gl�ria (Sir 14, 20-27).
Para o autor inspirado, como se v�, o desejo de conhecer uma caracter�stica comum a todos os homens. Gra�as intelig�ncia, dada a todos, crentes e descrentes, a possibilidade de saciarem-se nas �guas profundas do conhecimento (cf. Prov 20, 5). Seguramente, no Antigo Israel, o conhecimento do mundo e dos seus fen�menos n�o se realizava pela via da abstrac��o, como j� o fazia o fil�sofo j�nico ou o s�bio eg�pcio. E menos ainda podia o bom israelita conceber o conhecimento nos par�metros pr�prios da �poca moderna, mais propensa subdivis�o do saber. Apesar disso, o mundo b�blico fez confluir, para o grande mar da teoria do conhecimento, o seu contributo original.
Qual? O car�cter peculiar do texto b�blico reside na convic��o de que existe uma unidade profunda e indivis�vel entre o conhecimento da raz�o e o da f�. O mundo e o que nele acontece, assim como a hist�ria e as diversas vicissitudes da na��o s�o realidades observadas, analisadas e julgadas com os meios pr�prios da raz�o, mas sem deixar a f� alheia a este processo. Esta n�o interv�m para humilhar a autonomia da raz�o, nem para reduzir o seu espa�o de ac��o, mas apenas para fazer compreender ao homem que, em tais acontecimentos, Se torna vis�vel e actua o Deus de Israel. Assim, n�o poss�vel conhecer profundamente o mundo e os factos da hist�ria, sem ao mesmo tempo professar a f� em Deus que neles actua. A f� aperfei�oa o olhar interior, abrindo a mente para descobrir, no curso dos acontecimentos, a presen�a operante da Provid�ncia. A tal prop�sito, significativa uma express�o do livro dos Prov�rbios: A mente do homem disp�e o seu caminho, mas o Senhor quem dirige os seus passos (16, 9). como se dissesse que o homem, pela luz da raz�o, pode reconhecer a sua estrada, mas percorr�-la de maneira decidida, sem obst�culos e at� ao fim, ele s� o consegue se, de �nimo recto, integrar a sua pesquisa no horizonte da f�. Por isso, a raz�o e a f� n�o podem ser separadas, sem fazer com que o homem perca a possibilidade de conhecer de modo adequado a si mesmo, o mundo e Deus.
17. N�o h� motivo para existir concorr�ncia entre a raz�o e a f�: uma implica a outra, e cada qual tem o seu espa�o pr�prio de realiza��o. Aponta nesta direc��o o livro dos Prov�rbios, quando exclama: A gl�ria de Deus encobrir as coisas, e a gl�ria dos reis investig�-las (25, 2). Deus e o homem est�o colocados, em seu respectivo mundo, numa rela��o �nica. Em Deus reside a origem de tudo, n'Ele se encerra a plenitude do mist�rio, e isto constitui a sua gl�ria; ao homem, pelo contr�rio, compete o dever de investigar a verdade com a raz�o, e nisto est� a sua nobreza. Um novo ladrilho colocado neste mosaico pelo Salmista, quando diz: Qu�o insond�veis para mim, Deus, vossos pensamentos! Qu�o imenso o seu n�mero! Quisera cont�-los, s�o mais que as areias; se pudesse chegar ao fim, estaria ainda convosco (139/ 138, 17-18). O desejo de conhecer t�o grande e comporta tal dinamismo que o cora��o do homem, ao tocar o limite intranspon�vel, suspira pela riqueza infinita que se encontra para al�m deste, por intuir que nela est� contida a resposta cabal para toda a quest�o ainda sem resposta.
18. Podemos, pois, dizer que Israel, com a sua reflex�o, soube abrir raz�o o caminho para o mist�rio. Na revela��o de Deus, p�de sondar em profundidade aquilo que a raz�o estava procurando alcan�ar sem o conseguir. A partir desta forma mais profunda de conhecimento, o Povo Eleito compreendeu que a raz�o deve respeitar algumas regras fundamentais, para manifestar do melhor modo poss�vel a pr�pria natureza. A primeira regra ter em conta que o conhecimento do homem um caminho que n�o permite descanso; a segunda nasce da consci�ncia de que n�o se pode percorrer tal caminho com o orgulho de quem pensa que tudo seja fruto de conquista pessoal; a terceira regra funda-se no temor de Deus �, de quem a raz�o deve reconhecer tanto a transcend�ncia soberana como o amor sol�cito no governo do mundo.
Quando o homem se afasta destas regras, corre o risco de falimento e acaba por encontrar-se na condi��o do insensato �. Segundo a B�blia, nesta insensatez encerra-se uma amea�a vida. que o insensato ilude-se pensando que conhece muitas coisas, mas, de facto, n�o capaz de fixar o olhar nas realidades essenciais. E isto impede-lhe de p�r ordem na sua mente (cf. Prov 1, 7) e de assumir uma atitude correcta para consigo mesmo e o ambiente circundante. Quando, depois, chega a afirmar que Deus n�o existe (cf. Sal 1413, 1), isso revela, com absoluta clareza, quanto seja deficiente o seu conhecimento e qu�o distante esteja ele da verdade plena a respeito das coisas, da sua origem e do seu destino.
19. Encontramos, no livro da Sabedoria, alguns textos importantes, que iluminam ainda melhor este assunto. L�, o autor sagrado fala de Deus que Se d� a conhecer tamb�m atrav�s da natureza. Para os antigos, o estudo das ci�ncias naturais coincidia, em grande parte, com o saber filos�fico. Depois de ter afirmado que o homem, com a sua intelig�ncia, capaz de conhecer a constitui��o do universo e a for�a dos elementos (...), o ciclo dos anos e a posi��o dos astros, a natureza dos animais mansos e os instintos dos animais ferozes (Sab 7, 17.19-20), por outras palavras, que o homem capaz de filosofar, o texto sagrado d� um passo em frente muito significativo. Retomando o pensamento da filosofia grega, qual parece referir-se neste contexto, o autor afirma que, raciocinando precisamente sobre a natureza, pode-se chegar ao Criador: Pela grandeza e beleza das criaturas, pode-se, por analogia, chegar ao conhecimento do seu Autor (Sab 13, 5). Reconhece-se, assim, um primeiro n�vel da revela��o divina, constitu�do pelo maravilhoso livro da natureza �; lendo-o com os meios pr�prios da raz�o humana, pode-se chegar ao conhecimento do Criador. Se o homem, com a sua intelig�ncia, n�o chega a reconhecer Deus como criador de tudo, isso fica-se a dever n�o tanto falta de um meio adequado, como sobretudo ao obst�culo interposto pela sua vontade livre e pelo seu pecado.
20. Nesta perspectiva, a raz�o valorizada, mas n�o superexaltada. O que ela alcan�a pode ser verdade, mas s� adquire pleno significado se o seu conte�do for situado num horizonte mais amplo, o da f�: O Senhor quem dirige os passos do homem; como poder� o homem compreender o seu pr�prio destino? (Prov 20, 24). A f�, segundo o Antigo Testamento, liberta a raz�o, na medida em que lhe permite alcan�ar coerentemente o seu objecto de conhecimento e situ�-lo naquela ordem suprema onde tudo adquire sentido. Em resumo, pela raz�o o homem alcan�a a verdade, porque, iluminado pela f�, descobre o sentido profundo de tudo e, particularmente, da pr�pria exist�ncia. Justamente, pois, o autor sagrado coloca o in�cio do verdadeiro conhecimento no temor de Deus: O temor do Senhor o princ�pio da sabedoria (Prov 1, 7; cf. Sir 1, 14).
2. Adquire a sabedoria, adquire a intelig�ncia (Prov 4, 5)
21. Segundo o Antigo Testamento, o conhecimento n�o se baseia apenas numa atenta observa��o do homem, do mundo e da hist�ria, mas sup�e como indispens�vel tamb�m uma rela��o com a f� e os conte�dos da Revela��o. Aqui se concentram os desafios que o Povo Eleito teve de enfrentar e a que deu resposta. Ao reflectir sobre esta sua condi��o, o homem b�blico descobriu que n�o se podia compreender sen�o como ser em rela��o �: rela��o consigo mesmo, com o povo, com o mundo e com Deus. Esta abertura ao mist�rio, que provinha da Revela��o, acabou por ser, para ele, a fonte dum verdadeiro conhecimento, que permitiu sua raz�o aventurar-se em espa�os infinitos, recebendo inesperadas possibilidades de compreens�o.
Segundo o autor sagrado, o esfor�o da investiga��o n�o estava isento da fadiga causada pelo embate nas limita��es da raz�o. Sente-se isso mesmo, por exemplo, nas palavras com que o livro dos Prov�rbios denuncia o cansa�o provado ao tentar compreender os misteriosos des�gnios de Deus (cf. 30, 1-6). Todavia, apesar da fadiga, o crente n�o desiste. E a for�a para continuar o seu caminho rumo verdade prov�m da certeza de que Deus o criou como um explorador (cf. Coel 1, 13), cuja miss�o n�o deixar nada sem tentar, n�o obstante a cont�nua chantagem da d�vida. Apoiando-se em Deus, o crente permanece, em todo o lado e sempre, inclinado para o que belo, bom e verdadeiro.
22. S. Paulo, no primeiro cap�tulo da carta aos Romanos, ajuda-nos a avaliar melhor quanto seja incisiva a reflex�o dos Livros Sapienciais. Desenvolvendo com linguagem popular uma argumenta��o filos�fica, o Ap�stolo exprime uma verdade profunda: atrav�s da cria��o, os olhos da mente podem chegar ao conhecimento de Deus. Efectivamente, atrav�s das criaturas, Ele faz intuir raz�o o seu poder e a sua divindade (cf. Rom 1, 20). Deste modo, atribu�da raz�o humana uma capacidade tal que parece quase superar os seus pr�prios limites naturais: n�o s� ultrapassa o �mbito do conhecimento sensorial, visto que lhe poss�vel reflectir criticamente sobre o mesmo, mas, raciocinando a partir dos dados dos sentidos, pode chegar tamb�m causa que est� na origem de toda a realidade sens�vel. Em terminologia filos�fica, podemos dizer que, neste significativo texto paulino, est� afirmada a capacidade metaf�sica do homem.
Segundo o Ap�stolo, no projecto origin�rio da cria��o estava prevista a capacidade de a raz�o ultrapassar comodamente o dado sens�vel para alcan�ar a origem mesma de tudo: o Criador. Como resultado da desobedi�ncia com que o homem escolheu colocar-se em plena e absoluta autonomia relativamente �quele que o tinha criado, perdeu tal facilidade de acesso a Deus criador.
O livro do G�nesis descreve de maneira figurada esta condi��o do homem, quando narra que Deus o colocou no jardim do �den, tendo no centro a �rvore da ci�ncia do bem e do mal (2, 17). O s�mbolo claro: o homem n�o era capaz de discernir e decidir, por si s�, aquilo que era bem e o que era mal, mas devia apelar-se a um princ�pio superior. A cegueira do orgulho iludiu os nossos primeiros pais de que eram soberanos e aut�nomos, podendo prescindir do conhecimento vindo de Deus. Nesta desobedi�ncia original, eles implicaram todo o homem e mulher, causando raz�o traumas s�rios que haveriam de dificultar-lhe, da� em diante, o caminho para a verdade plena. Agora a capacidade humana de conhecer a verdade aparece ofuscada pela avers�o contra Aquele que fonte e origem da verdade. O pr�prio ap�stolo S. Paulo nos revela como, por causa do pecado, os pensamentos dos homens se tornaram v�os e os seus arrazoados tortuosos e falsos (cf. Rom 1, 21-22). Os olhos da mente deixaram de ser capazes de ver claramente: a raz�o foi progressivamente ficando prisioneira de si mesma. A vinda de Cristo foi o acontecimento de salva��o que redimiu a raz�o da sua fraqueza, libertando-a dos grilh�es onde ela mesma se tinha algemado.
23. Deste modo, a rela��o do crist�o com a filosofia requer um discernimento radical. No Novo Testamento, especialmente nas cartas de S. Paulo, aparece claramente este dado: a contraposi��o entre a sabedoria deste mundo e a sabedoria de Deus revelada em Jesus Cristo. A profundidade da sabedoria revelada rompe o c�rculo dos nossos esquemas de reflex�o habituais, que n�o s�o minimamente capazes de exprimi-la de forma adequada.
O in�cio da primeira carta aos Cor�ntios apresenta radicalmente este dilema. O Filho de Deus crucificado o acontecimento hist�rico contra o qual se desfaz toda a tentativa da mente para construir, sobre raz�es puramente humanas, uma justifica��o suficiente do sentido da exist�ncia. O verdadeiro ponto nodal, que desafia qualquer filosofia, a morte de Jesus Cristo na cruz. Aqui, de facto, qualquer tentativa de reduzir o plano salv�fico do Pai a mera l�gica humana est� destinada fal�ncia. Onde est� o s�bio? Onde est� o erudito? Onde est� o investigador deste s�culo? Porventura, Deus n�o considerou louca a sabedoria deste mundo? (1 Cor 1, 20) interroga-se enfaticamente o Ap�stolo. Para aquilo que Deus quer realizar, n�o basta a simples sabedoria do homem s�bio, requer-se um passo decisivo que leve ao acolhimento duma novidade radical: O que louco segundo o mundo que Deus escolheu para confundir os s�bios (...). O que vil e desprez�vel no mundo, que Deus escolheu, como tamb�m aquelas coisas que nada s�o, para destruir as que s�o (1 Cor 1, 27-28). A sabedoria do homem recusa ver na pr�pria fragilidade o pressuposto da sua for�a; mas S. Paulo n�o hesita em afirmar: Quando me sinto fraco, ent�o que sou forte (2 Cor 12, 10). O homem n�o consegue compreender como possa a morte ser fonte de vida e de amor, mas Deus, para revelar o mist�rio do seu des�gnio salvador, escolheu precisamente o que a raz�o considera loucura e esc�ndalo �. Usando a linguagem dos fil�sofos do seu tempo, Paulo chega ao cl�max da sua doutrina e do paradoxo que quer exprimir: Deus escolheu, no mundo, aquelas coisas que nada s�o, para destruir as que s�o (cf. 1 Cor 1, 28). Para exprimir o car�cter gratuito do amor revelado na cruz de Cristo, o Ap�stolo n�o tem medo de usar a linguagem mais radical que os fil�sofos empregavam nas suas reflex�es a respeito de Deus. A raz�o n�o pode esgotar o mist�rio de amor que a Cruz representa, mas a Cruz pode dar raz�o a resposta �ltima que esta procura. S. Paulo coloca, n�o a sabedoria das palavras, mas a Palavra da Sabedoria como crit�rio, simultaneamente, de verdade e de salva��o.
Por conseguinte, a sabedoria da Cruz supera qualquer limite cultural que se lhe queira impor, obrigando a abrir-se universalidade da verdade de que portadora. Como grande o desafio lan�ado nossa raz�o e como s�o enormes as vantagens que ter�, se ela se render! A filosofia, que por si mesma j� capaz de reconhecer a necessidade do homem se transcender continuamente na busca da verdade, pode, ajudada pela f�, abrir-se para, na loucura da Cruz, acolher como genu�na a cr�tica a quantos se iludem de possuir a verdade, encalhando-a nas sirtes dum sistema pr�prio. A rela��o entre a f� e a filosofia encontra, na prega��o de Cristo crucificado e ressuscitado, o escolho contra o qual pode naufragar, mas tamb�m para al�m do qual pode desembocar no oceano ilimitado da verdade. Aqui evidente a fronteira entre a raz�o e a f�, mas torna-se claro tamb�m o espa�o onde as duas se podem encontrar.
CAP�TULO III24. Nos Actos dos Ap�stolos, o evangelista Lucas narra a chegada de Paulo a Atenas, numa das suas viagens mission�rias. A cidade dos fil�sofos estava cheia de est�tuas, que representavam v�rios �dolos; e chamou-lhe a aten��o um altar, que Paulo prontamente aproveitou como motivo e base comum para iniciar o an�ncio do querigma: Atenienses disse ele �, vejo que sois, em tudo, os mais religiosos dos homens. Percorrendo a vossa cidade e examinando os vossos monumentos sagrados, at� encontrei um altar com esta inscri��o: "Ao Deus desconhecido". Pois bem! O que venerais sem conhecer, que eu vos anuncio (Act 17, 22-23). Partindo daqui, S. Paulo fala-lhes de Deus enquanto criador, como Aquele que tudo transcende e a tudo d� vida. Depois continua o seu discurso, dizendo: Fez a partir de um s� homem, todo o g�nero humano, para habitar em toda a face da Terra; e fixou a sequ�ncia dos tempos e os limites para a sua habita��o, a fim de que os homens procurem a Deus e se esforcem por encontr�-Lo, mesmo tacteando, embora n�o Se encontre longe de cada um de n�s (Act 17, 26-27).
O Ap�stolo p�e em destaque uma verdade que a Igreja sempre guardou no seu tesouro: no mais fundo do cora��o do homem, foi semeado o desejo e a nostalgia de Deus. Recorda-o a liturgia de Sexta-feira Santa, quando, convidando a rezar pelos que n�o cr�em, diz: Deus eterno e omnipotente, criastes os homens para que Vos procurem, de modo que s� em V�s descansa o seu cora��o �. (22) Existe, portanto, um caminho que o homem, se quiser, pode percorrer; o seu ponto de partida est� na capacidade de a raz�o superar o contingente para se estender at� ao infinito.
De v�rios modos e em tempos diversos, o homem demonstrou que conseguia dar voz a este seu desejo �ntimo. A literatura, a m�sica, a pintura, a escultura, a arquitectura e outras realiza��es da sua intelig�ncia criadora tornaram-se canais de que ele se serviu para exprimir esta sua ansiosa procura. Mas foi sobretudo a filosofia que, de modo peculiar, recolheu este movimento, exprimindo, com os meios e segundo as modalidades cient�ficas que lhe s�o pr�prias, este desejo universal do homem.
25. Todos os homens desejam saber �, (23) e o objecto pr�prio deste desejo a verdade. A pr�pria vida quotidiana demonstra o interesse que tem cada um em descobrir, para al�m do que ouve, a realidade das coisas. Em toda a cria��o vis�vel, o homem o �nico ser que capaz n�o s� de saber, mas tamb�m de saber que sabe, e por isso se interessa pela verdade real daquilo que v�. Ningu�m pode sinceramente ficar indiferente quanto verdade do seu saber. Se descobre que falso, rejeita-o; se, pelo contr�rio, consegue certificar-se da sua verdade, sente-se satisfeito. a li��o que nos d� Santo Agostinho, quando escreve: Encontrei muitos com desejos de enganar outros, mas n�o encontrei ningu�m que quisesse ser enganado �. (24) Considera-se, justamente, que uma pessoa alcan�ou a idade adulta, quando consegue discernir, por seus pr�prios meios, entre aquilo que verdadeiro e o que falso, formando um ju�zo pessoal sobre a realidade objectiva das coisas. Est� aqui o motivo de muitas pesquisas, particularmente no campo das ci�ncias, que levaram, nos �ltimos s�culos, a resultados t�o significativos, favorecendo realmente o progresso da humanidade inteira.
E a pesquisa t�o importante no campo te�rico, como no �mbito pr�tico: ao referir-me a este, desejo aludir procura da verdade a respeito do bem que se deve realizar. Com efeito, gra�as precisamente ao agir �tico, a pessoa, se actuar segundo a sua livre e recta vontade, entra pela estrada da felicidade e encaminha-se para a perfei��o. Tamb�m neste caso, est� em quest�o a verdade. Reafirmei esta convic��o na carta enc�clica Veritatis splendor: N�o h� moral sem liberdade (...). Se existe o direito de ser respeitado no pr�prio caminho em busca da verdade, h� ainda antes a obriga��o moral grave para cada um de procurar a verdade e de aderir a ela, uma vez conhecida �. (25)
Por isso, necess�rio que os valores escolhidos e procurados na vida sejam verdadeiros, porque s� estes que podem aperfei�oar a pessoa, realizando a sua natureza. N�o fechando-se em si mesmo que o homem encontra esta verdade dos valores, mas abrindo-se para a receber mesmo de dimens�es que o transcendem. Esta uma condi��o necess�ria para que cada um se torne ele mesmo e cres�a como pessoa adulta e madura.
26. Ao princ�pio, a verdade apresenta-se ao homem sob forma interrogativa: A vida tem um sentido? Para onde se dirige? primeira vista, a exist�ncia pessoal poderia aparecer radicalmente sem sentido. N�o preciso recorrer aos fil�sofos do absurdo, nem �s perguntas provocat�rias que se encontram no livro de Job para duvidar do sentido da vida. A experi�ncia quotidiana do sofrimento, pessoal e alheio, e a observa��o de muitos factos, que luz da raz�o se revelam inexplic�veis, bastam para tornar inilud�vel um problema t�o dram�tico como a quest�o do sentido da vida. (26) A isto se deve acrescentar que a primeira verdade absolutamente certa da nossa exist�ncia, para al�m do facto de existirmos, a inevitabilidade da morte. Perante um dado t�o desconcertante como este, imp�e-se a busca de uma resposta exaustiva. Cada um quer, e deve, conhecer a verdade sobre o seu fim. Quer saber se a morte ser� o termo definitivo da sua exist�ncia, ou se algo permanece para al�m da morte; se pode esperar uma vida posterior, ou n�o. significativo que o pensamento filos�fico tenha recebido, da morte de S�crates, uma orienta��o decisiva que o marcou durante mais de dois mil�nios. Certamente n�o por acaso que os fil�sofos, perante a realidade da morte, sempre voltam a p�r-se este problema, associado quest�o do sentido da vida e da imortalidade.
27. A tais quest�es, n�o pode esquivar-se ningu�m nem o fil�sofo, nem o homem comum. E, da resposta que se lhes der, deriva uma orienta��o decisiva da investiga��o: a possibilidade, ou n�o, de alcan�ar uma verdade universal. Por si mesma qualquer verdade, mesmo parcial, se realmente verdade, apresenta-se como universal e absoluta. Aquilo que verdadeiro deve ser verdadeiro sempre e para todos. Contudo, para al�m desta universalidade, o homem procura um absoluto que seja capaz de dar resposta e sentido a toda a sua pesquisa: algo de definitivo, que sirva de fundamento a tudo o mais. Por outras palavras, procura uma explica��o definitiva, um valor supremo, para al�m do qual n�o existam, nem possam existir, ulteriores perguntas ou apelos. As hip�teses podem seduzir, mas n�o saciam. Para todos, chega o momento em que, admitam-no ou n�o, h� necessidade de ancorar a exist�ncia a uma verdade reconhecida como definitiva, que forne�a uma certeza livre de qualquer d�vida.
Os fil�sofos procuraram, ao longo dos s�culos, descobrir e exprimir tal verdade, criando um sistema ou uma escola de pensamento. Mas, para al�m dos sistemas filos�ficos, existem outras express�es nas quais o homem procura formular a sua filosofia �: trata-se de convic��es ou experi�ncias pessoais, tradi��es familiares e culturais, ou itiner�rios existenciais vividos sob a autoridade de um mestre. A cada uma destas manifesta��es, subjaz sempre vivo o desejo de alcan�ar a certeza da verdade e do seu valor absoluto.
2. Os diferentes rostos da verdade do homem28. H� que reconhecer que a busca da verdade nem sempre se desenrola com a referida transpar�ncia e coer�ncia de racioc�nio. Muitas vezes, as limita��es naturais da raz�o e a inconst�ncia do cora��o ofuscam e desviam a pesquisa pessoal. Outros interesses de v�ria ordem podem sobrepor-se verdade. Acontece tamb�m que o pr�prio homem a evite, quando come�a a entrev�-la, porque teme as suas exig�ncias. Apesar disto, mesmo quando a evita, sempre a verdade que preside sua exist�ncia. Com efeito, nunca poderia fundar a sua vida sobre a d�vida, a incerteza ou a mentira; tal exist�ncia estaria constantemente amea�ada pelo medo e a ang�stia. Assim, pode-se definir o homem como aquele que procura a verdade.
29. impens�vel que uma busca, t�o profundamente radicada na natureza humana, possa ser completamente in�til e v�. A pr�pria capacidade de procurar a verdade e fazer perguntas implica j� uma primeira resposta. O homem n�o come�aria a procurar uma coisa que ignorasse totalmente ou considerasse absolutamente inating�vel. S� a previs�o de poder chegar a uma resposta que consegue induzi-lo a dar o primeiro passo. De facto, assim sucede normalmente na pesquisa cient�fica. Quando o cientista, depois de ter uma intui��o, se lan�a procura da explica��o l�gica e emp�rica dum certo fen�meno, f�-lo porque tem a esperan�a, desde o in�cio, de encontrar uma resposta, e n�o se d� por vencido com os insucessos. Nem considera in�til a intui��o inicial, s� porque n�o alcan�ou o seu objectivo; dir� antes, e justamente, que n�o encontrou ainda a resposta adequada.
O mesmo deve valer tamb�m para a busca da verdade no �mbito das quest�es �ltimas. A sede de verdade est� t�o radicada no cora��o do homem que, se tivesse de prescindir dela, a sua exist�ncia ficaria comprometida. Basta observar a vida de todos os dias para constatar como dentro de cada um de n�s se sente o tormento de algumas quest�es essenciais e, ao mesmo tempo, se guarda na alma, pelo menos, o esbo�o das respectivas respostas. S�o respostas de cuja verdade estamos convencidos, at� porque notamos que n�o diferem substancialmente das respostas a que muitos outros chegaram. Por certo, nem toda a verdade adquirida possui o mesmo valor; todavia, o conjunto dos resultados alcan�ados confirma a capacidade que o ser humano, em princ�pio, tem de chegar verdade.
30. Conv�m, agora, fazer uma r�pida men��o das diversas formas de verdade. As mais numerosas s�o as verdades que assentam em evid�ncias imediatas ou recebem confirma��o da experi�ncia: esta a ordem pr�pria da vida quotidiana e da pesquisa cient�fica. N�vel diverso ocupam as verdades de car�cter filos�fico, que o homem alcan�a atrav�s da capacidade especulativa do seu intelecto. Por �ltimo, existem as verdades religiosas, que de algum modo t�m as suas ra�zes tamb�m na filosofia; est�o contidas nas respostas que as diversas religi�es oferecem, nas suas tradi��es, �s quest�es �ltimas. (27)
Quanto �s verdades filos�ficas, necess�rio especificar que n�o se limitam s� �s doutrinas, por vezes ef�meras, dos fil�sofos profissionais. Como j� disse, todo o homem �, de certa forma, um fil�sofo e possui as suas pr�prias concep��es filos�ficas, pelas quais orienta a sua vida. De diversos modos, consegue formar uma vis�o global e uma resposta sobre o sentido da pr�pria exist�ncia: e, luz disso, interpreta a pr�pria vida pessoal e regula o seu comportamento. aqui que deveria colocar-se a quest�o da rela��o entre as verdades filos�fico-religiosas e a verdade revelada em Jesus Cristo. Antes de responder a tal quest�o, preciso ter em conta outro dado da filosofia.
31. O homem n�o foi criado para viver sozinho. Nasce e cresce numa fam�lia, para depois se inserir, pelo seu trabalho, na sociedade. Assim a pessoa aparece integrada, desde o seu nascimento, em v�rias tradi��es; delas recebe n�o apenas a linguagem e a forma��o cultural, mas tamb�m muitas verdades nas quais acredita quase instintivamente. Entretanto, o crescimento e a matura��o pessoal implicam que tais verdades possam ser postas em d�vida e avaliadas atrav�s da actividade cr�tica pr�pria do pensamento. Isto n�o impede que, uma vez passada esta fase, aquelas mesmas verdades sejam recuperadas com base na experi�ncia feita ou em virtude de sucessiva pondera��o. Apesar disso, na vida duma pessoa, s�o muito mais numerosas as verdades simplesmente acreditadas que aquelas adquiridas por verifica��o pessoal. Na realidade, quem seria capaz de avaliar criticamente os inumer�veis resultados das ci�ncias, sobre os quais se fundamenta a vida moderna? Quem poderia, por conta pr�pria, controlar o fluxo de informa��es, recebidas diariamente de todas as partes do mundo e que, por princ�pio, s�o aceites como verdadeiras? Enfim, quem poderia percorrer novamente todos os caminhos de experi�ncia e pensamento, pelos quais se foram acumulando os tesouros de sabedoria e religiosidade da humanidade? Portanto, o homem, ser que busca a verdade, tamb�m aquele que vive de cren�as.
32. Cada um, quando cr�, confia nos conhecimentos adquiridos por outras pessoas. Neste acto, pode-se individuar uma significativa tens�o: por um lado, o conhecimento por cren�a apresenta-se como uma forma imperfeita de conhecimento, que precisa de se aperfei�oar progressivamente por meio da evid�ncia alcan�ada pela pr�pria pessoa; por outro lado, a cren�a muitas vezes mais rica, humanamente, do que a simples evid�ncia, porque inclui a rela��o interpessoal, pondo em jogo n�o apenas as capacidades cognoscitivas do pr�prio sujeito, mas tamb�m a sua capacidade mais radical de confiar noutras pessoas, iniciando com elas um relacionamento mais est�vel e �ntimo.
Importa sublinhar que as verdades procuradas nesta rela��o interpessoal n�o s�o primariamente de ordem emp�rica ou de ordem filos�fica. O que se busca sobretudo a verdade da pr�pria pessoa: aquilo que ela e o que manifesta do seu pr�prio �ntimo. De facto, a perfei��o do homem n�o se reduz apenas aquisi��o do conhecimento abstracto da verdade, mas consiste tamb�m numa rela��o viva de doa��o e fidelidade ao outro. Nesta fidelidade que leva doa��o, o homem encontra plena certeza e seguran�a. Ao mesmo tempo, por�m, o conhecimento por cren�a, que se fundamenta na confian�a interpessoal, tem a ver tamb�m com a verdade: de facto, acreditando, o homem confia na verdade que o outro lhe manifesta.
Quantos exemplos se poderiam aduzir para ilustrar este dado! O primeiro que me vem ao pensamento o testemunho dos m�rtires. Com efeito, o m�rtir a testemunha mais genu�na da verdade da exist�ncia. Ele sabe que, no seu encontro com Jesus Cristo, alcan�ou a verdade a respeito da sua vida, e nada nem ningu�m poder� jamais arrancar-lhe esta certeza. Nem o sofrimento, nem a morte violenta poder�o faz�-lo retroceder da ades�o verdade que descobriu no encontro com Cristo. Por isso mesmo que, at� agora, o testemunho dos m�rtires atrai, gera consenso, escutado e seguido. Esta a raz�o pela qual se tem confian�a na sua palavra: descobre-se neles a evid�ncia dum amor que n�o precisa de longas demonstra��es para ser convincente, porque fala daquilo que cada um, no mais fundo de si mesmo, j� sente como verdadeiro e que h� tanto tempo procurava. Em resumo, o m�rtir provoca em n�s uma profunda confian�a, porque diz aquilo que j� sentimos e torna evidente aquilo que n�s mesmos quer�amos ter a for�a de dizer.
33. Deste modo, foi poss�vel completar progressivamente os dados do problema. O homem, por sua natureza, procura a verdade. Esta busca n�o se destina apenas conquista de verdades parciais, f�sicas ou cient�ficas; n�o busca s� o verdadeiro bem em cada um das suas decis�es. Mas a sua pesquisa aponta para uma verdade superior, que seja capaz de explicar o sentido da vida; trata-se, por conseguinte, de algo que n�o pode desembocar sen�o no absoluto. (28) Gra�as �s capacidades de que est� dotado o seu pensamento, o homem pode encontrar e reconhecer uma tal verdade. Sendo esta vital e essencial para a sua exist�ncia, chega-se a ela n�o s� por via racional, mas tamb�m atrav�s de um abandono fiducial a outras pessoas que possam garantir a certeza e autenticidade da verdade. A capacidade e a decis�o de confiar o pr�prio ser e exist�ncia a outra pessoa constituem, sem d�vida, um dos actos antropologicamente mais significativos e expressivos.
� bom n�o esquecer que tamb�m a raz�o, na sua busca, tem necessidade de ser apoiada por um di�logo confiante e uma amizade sincera. O clima de suspeita e desconfian�a, que por vezes envolve a pesquisa especulativa, ignora o ensinamento dos fil�sofos antigos, que punham a amizade como um dos contextos mais adequados para o recto filosofar.
Do que ficou dito conclui-se que o homem se encontra num caminho de busca, humanamente infind�vel: busca da verdade e busca duma pessoa em quem poder confiar. A f� crist� vem em sua ajuda, dando-lhe a possibilidade concreta de ver realizado o objectivo dessa busca. De facto, superando o n�vel da simples cren�a, ela introduz o homem naquela ordem da gra�a que lhe consente participar no mist�rio de Cristo, onde lhe oferecido o conhecimento verdadeiro e coerente de Deus Uno e Trino. Deste modo, em Jesus Cristo, que a Verdade, a f� reconhece o apelo �ltimo dirigido humanidade, para que possa tornar realidade o que experimenta como desejo e nostalgia.
34. Esta verdade, que Deus nos revela em Jesus Cristo, n�o est� em contraste com as verdades que se alcan�am filosofando. Pelo contr�rio, as duas ordens de conhecimento conduzem verdade na sua plenitude. A unidade da verdade j� um postulado fundamental da raz�o humana, expresso no princ�pio de n�o-contradi��o. A Revela��o d� a certeza desta unidade, ao mostrar que Deus criador tamb�m o Deus da hist�ria da salva��o. Deus que fundamenta e garante o car�cter intelig�vel e racional da ordem natural das coisas, sobre o qual os cientistas se apoiam confiadamente, (29) o mesmo que Se revela como Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Esta unidade da verdade, natural e revelada, encontra a sua identifica��o viva e pessoal em Cristo, como recorda o ap�stolo Paulo: A verdade que existe em Jesus (Ef 4, 21; cf. Col 1, 15-20). Ele a Palavra eterna, na qual tudo foi criado, e ao mesmo tempo a Palavra encarnada que, com toda a sua pessoa,30 revela o Pai (cf. Jo 1, 14.18). Aquilo que a raz�o humana procura sem o conhecer (cf. Act 17, 23), s� pode ser encontrado por meio de Cristo: de facto, o que n'Ele se revela a verdade plena (cf. Jo 1, 14-16) de todo o ser que, n'Ele e por Ele, foi criado e, por isso mesmo, n'Ele encontra a sua realiza��o (cf. Col 1, 17).
35. Tendo estas considera��es gerais como pano de fundo, necess�rio agora examinar, de maneira mais directa, a rela��o entre a verdade revelada e a filosofia. Tal rela��o requer uma dupla considera��o, visto que a verdade que nos vem da Revela��o tem de ser, simultaneamente, compreendida pela luz da raz�o. S� nesta dupla acep��o que ser� poss�vel especificar a justa rela��o da verdade revelada com o saber filos�fico. Por isso, vamos considerar, em primeiro lugar, as rela��es entre a f� e a filosofia ao longo da hist�ria, donde ser� poss�vel individuar alguns princ�pios, que constituem os pontos de refer�ncia aos quais recorrer para estabelecer a correcta rela��o entre as duas ordens de conhecimento.
CAP�TULO IV1. As etapas significativas do encontro entre a f� e a raz�o
36. Os Actos dos Ap�stolos testemunham que o an�ncio crist�o se encontrou, desde os seus prim�rdios, com as correntes filos�ficas do tempo. L� se refere a discuss�o que S. Paulo teve com alguns fil�sofos epicuristas e est�icos (17, 18). A an�lise exeg�tica do discurso no Are�pago evidenciou repetidas alus�es a ideias populares, predominantemente de origem est�ica. Certamente isso n�o se deu por acaso; os primeiros crist�os, para se fazerem compreender pelos pag�os, n�o podiam citar apenas Mois�s e os profetas nos seus discursos, mas tinham de servir-se tamb�m do conhecimento natural de Deus e da voz da consci�ncia moral de cada homem (cf. Rom 1, 19-21; 2, 14-15; Act 14, 16-17). Como, por�m, na religi�o pag�, esse conhecimento natural tinha degenerado em idolatria (cf. Rom 1, 21-32), o Ap�stolo considerou mais prudente ligar o seu discurso ao pensamento dos fil�sofos, que desde o in�cio tinham contraposto, aos mitos e cultos mist�ricos, conceitos mais respeitosos da transcend�ncia divina.
De facto, um dos cuidados que mais a peito tiveram os fil�sofos do pensamento cl�ssico, foi purificar de formas mitol�gicas a concep��o que os homens tinham de Deus. Bem sabemos que a religi�o grega, como grande parte das religi�es c�smicas, era polite�sta, chegando a divinizar at� coisas e fen�menos da natureza. As tentativas do homem para compreender a origem dos deuses e, nestes, a do universo tiveram a sua primeira express�o na poesia. As teogonias permanecem, at� hoje, o primeiro testemunho desta investiga��o do homem. Os pais da filosofia tiveram por miss�o mostrar a liga��o entre a raz�o e a religi�o. Estendendo o olhar para os princ�pios universais, deixaram de contentar-se com os mitos antigos e procuraram dar fundamento racional sua cren�a na divindade. Embocou-se assim uma estrada que, saindo das antigas tradi��es particulares, levava a um desenvolvimento que correspondia �s exig�ncias da raz�o universal. O fim que tal desenvolvimento tinha em vista era a verifica��o cr�tica daquilo em que se acreditava. A primeira a ganhar com esse caminho feito foi a concep��o da divindade. As supersti��es acabaram por ser reconhecidas como tais, e a religi�o, pelo menos em parte, foi purificada pela an�lise racional. Foi nesta base que os Padres da Igreja institu�ram um di�logo fecundo com os fil�sofos antigos, abrindo a estrada ao an�ncio e compreens�o do Deus de Jesus Cristo.
37. Quando se menciona este movimento de aproxima��o dos crist�os filosofia, obrigat�rio recordar tamb�m a cautela com que eles olhavam outros elementos do mundo cultural pag�o, como, por exemplo, a gnose. A filosofia, enquanto sabedoria pr�tica e escola de vida, podia facilmente ser confundida com um conhecimento de tipo superior, esot�rico, reservado a poucos iluminados. �, sem d�vida, a especula��es esot�ricas deste g�nero que pensa S. Paulo, quando adverte os Colossenses: Vede que ningu�m vos engane com falsas e v�s filosofias, fundadas nas tradi��es humanas, nos elementos do mundo, e n�o em Cristo (2, 8). Como s�o actuais estas palavras do Ap�stolo, quando as referimos �s diversas formas de esoterismo que hoje se difundem mesmo entre alguns crentes, privados do necess�rio sentido cr�tico! Seguindo as pegadas de S. Paulo, outros escritores dos primeiros s�culos, particularmente Santo Ireneu e Tertuliano, puseram reservas a uma orienta��o cultural que pretendia subordinar a verdade da Revela��o interpreta��o dos fil�sofos.
38. Como vemos, o encontro do cristianismo com a filosofia n�o foi f�cil nem imediato. A exercita��o desta e a frequ�ncia das respectivas escolas foi vista mais vezes pelos primeiros crist�os como transtorno, do que como uma oportunidade. Para eles, a primeira e mais urgente miss�o era o an�ncio de Cristo ressuscitado, que havia de ser proposto num encontro pessoal, capaz de levar o interlocutor convers�o do cora��o e ao pedido do Baptismo. De qualquer modo, isso n�o significa que ignorassem a obriga��o de aprofundar a compreens�o da f� e suas motiva��es; antes pelo contr�rio. injusta e pretextuosa a cr�tica de Celso, quando acusa os crist�os de serem gente iletrada e rude �. (31) A explica��o deste seu desinteresse inicial tem de ser procurada noutro lado. Na realidade, o encontro com o Evangelho oferecia uma resposta t�o satisfat�ria quest�o do sentido da vida, at� ent�o insol�vel, que frequentar os fil�sofos parecia-lhes uma coisa sem interesse e, em certos aspectos, superada.
Isto �, hoje, ainda mais claro, se se pensa ao contributo dado pelo cristianismo, quando defende o acesso verdade como um direito universal. Derrubadas as barreiras raciais, sociais e sexuais, o cristianismo tinha anunciado, desde as suas origens, a igualdade de todos os homens diante de Deus. A primeira consequ�ncia deste conceito registou-se no tema da verdade, ficando decididamente superado o car�cter elitista que a sua busca tinha no pensamento dos antigos: se o acesso verdade um bem que permite chegar a Deus, todos devem estar em condi��es de poder percorrer esta estrada. As vias para chegar verdade continuam a ser muitas; mas, dado que a verdade crist� tem valor salv�fico, cada uma delas s� pode ser percorrida se conduzir meta final, ou seja, revela��o de Jesus Cristo.
Como pioneiro dum encontro positivo com o pensamento filos�fico, sempre marcado por um prudente discernimento, h� que recordar S. Justino. Apesar da grande estima que continuava a ter pela filosofia grega depois da sua convers�o, afirmava decidida e claramente que tinha encontrado, no cristianismo, a �nica filosofia segura e vantajosa �. (32) De forma semelhante, Clemente de Alexandria chamava ao Evangelho a verdadeira filosofia �, (33) e, em analogia com a lei mosaica, via a filosofia como uma instru��o proped�utica f� crist� (34) e uma prepara��o ao Evangelho. (35) Uma vez que a filosofia anela por aquela sabedoria que consiste na rectid�o da alma e da palavra e na pureza da vida, est� aberta sabedoria e tudo faz para a alcan�ar. No nosso meio, designam-se por fil�sofos os que amam a sabedoria que criadora e mestra de tudo, isto �, o conhecimento do Filho de Deus �.(36) Segundo este pensador alexandrino, a filosofia grega n�o tem como primeiro objectivo completar ou corroborar a verdade crist�; a sua fun��o �, sobretudo, a defesa da f�: A doutrina do Salvador perfeita em si mesma e n�o precisa de apoio, porque a for�a e a sabedoria de Deus. A filosofia grega n�o torna mais forte a verdade com o seu contributo, mas, porque torna impotente o ataque da sof�stica e desarma os assaltos trai�oeiros contra a verdade, foi justamente chamada sebe e muro de veda��o da vinha �.(37)
39. Entretanto, na hist�ria deste desenvolvimento, poss�vel constatar a assun��o cr�tica do pensamento filos�fico por parte dos pensadores crist�os. No meio dos primeiros exemplos encontrados, sobressai, sem d�vida, Or�genes. Contra os ataques lan�ados pelo fil�sofo Celso, ele recorre filosofia plat�nica para argumentar e responder-lhe. Citando v�rios elementos do pensamento plat�nico, come�a a elaborar uma primeira forma de teologia crist�. Naquele tempo, a designa��o mesma de teologia e a sua concep��o como discurso racional sobre Deus ainda estavam ligadas sua origem grega. Na filosofia aristot�lica, por exemplo, o termo designava a parte mais nobre e o verdadeiro apogeu do discurso filos�fico. Mas, luz da revela��o crist�, o que anteriormente indicava uma doutrina gen�rica sobre a divindade, passou a assumir um significado totalmente novo, ou seja, a reflex�o que o crente realiza para exprimir a verdadeira doutrina acerca de Deus. Este pensamento crist�o novo, que estava a desenvolver-se, servia-se da filosofia, mas ao mesmo tempo tendia a distinguir-se nitidamente dela. A hist�ria revela que o pr�prio pensamento plat�nico, quando foi assumido pela teologia, sofreu profundas transforma��es, especialmente em conceitos como a imortalidade da alma, a diviniza��o do homem e a origem do mal.
40. Nesta obra de cristianiza��o do pensamento plat�nico e neoplat�nico, merecem men��o particular os Padres Capad�cios, Dion�sio chamado o Areopagita e sobretudo Santo Agostinho. O grande Doutor ocidental contactara diversas escolas filos�ficas, mas todas o tinham desiludido. Quando se lhe deparou a verdade da f� crist�, ent�o teve a for�a de realizar aquela convers�o radical a que os fil�sofos anteriormente contactados n�o tinham conseguido induzi-lo. Ele mesmo refere o motivo: Preferindo a doutrina cat�lica, j� sentia, ent�o, que era mais razo�vel e menos enganoso sermos obrigados a crer o que n�o demonstrava, quer houvesse prova, mesmo que esta n�o estivesse ao alcance de qualquer pessoa, quer a n�o houvesse. Seria isto mais sensato do que zombarem da cren�a os manique�stas, apoiados em temer�ria promessa de ci�ncia, para depois nos mandarem acreditar em in�meras f�bulas t�o absurdas que as n�o podiam provar �. (38) Quanto aos plat�nicos, que ocupavam lugar privilegiado nos pontos de referimento de Agostinho, este censurava-os porque, embora conhecessem o fim para onde se devia tender, tinham, por�m, ignorado o caminho que l� conduzia: o Verbo encarnado. (39) O Bispo de Hipona conseguiu elaborar a primeira grande s�ntese do pensamento filos�fico e teol�gico, nela confluindo correntes do pensamento grego e latino. Tamb�m nele a grande unidade do saber, que tinha o seu fundamento no pensamento b�blico, acabou por ser confirmada e sustentada pela profundidade do pensamento especulativo. A s�ntese feita por Santo Agostinho permanecer� como a forma mais elevada de reflex�o filos�fica e teol�gica que o Ocidente, durante s�culos, conheceu. Com uma hist�ria pessoal intensa e ajudado por uma admir�vel santidade de vida, ele foi capaz de introduzir, nas suas obras, muitos dados que, apelando-se experi�ncia, antecipavam j� futuros desenvolvimentos de algumas correntes filos�ficas.
41. De diversas formas, pois, os Padres do Oriente e do Ocidente entraram em rela��o com as escolas filos�ficas. Isto n�o significa que tenham identificado o conte�do da sua mensagem com os sistemas a que faziam refer�ncia. A pergunta de Tertuliano: Que t�m em comum Atenas e Jerusal�m? Ou, a Academia e a Igreja? �, (40) um sintoma claro da consci�ncia cr�tica com que os pensadores crist�os encararam, desde as origens, o problema da rela��o entre a f� e a filosofia, vendo-o globalmente, tanto nos seus aspectos positivos como nas suas limita��es. N�o eram pensadores ing�nuos. Precisamente porque viviam de forma intensa o conte�do da f�, eles conseguiam chegar �s formas mais profundas da reflex�o. Por isso, injusto e redutivo limitar o seu trabalho a mera transposi��o das verdades de f� para categorias filos�ficas. Eles fizeram muito mais; conseguiram explicitar plenamente aquilo que resultava ainda impl�cito e preliminar no pensamento dos grandes fil�sofos antigos. (41) Estes, conforme j� disse, tiveram a fun��o de mostrar o modo como a raz�o, livre dos v�nculos externos, podia escapar do beco sem sa�da dos mitos, para melhor se abrir transcend�ncia. Uma raz�o purificada e recta era capaz de se elevar aos n�veis mais elevados da reflex�o, dando fundamento s�lido percep��o do ser, do transcendente e do absoluto.
Aqui mesmo se insere a novidade operada pelos Padres. Acolheram a raz�o na sua plena abertura ao absoluto e, nela, enxertaram a riqueza vinda da Revela��o. O encontro n�o foi apenas quest�o de culturas, uma das quais talvez seduzida pelo fasc�nio da outra; mas verificou-se no �ntimo da alma, e foi um encontro entre a criatura e o seu Criador. Ultrapassando o fim mesmo para o qual inconscientemente tendia por for�a da sua natureza, a raz�o p�de alcan�ar o sumo bem e a suma verdade na pessoa do Verbo encarnado. Ao encararem as filosofias, os Padres n�o tiveram medo de reconhecer tanto os elementos comuns como as diferen�as que aquelas apresentavam relativamente Revela��o. A percep��o das converg�ncias n�o ofuscava neles o reconhecimento das diferen�as.
42. Na teologia escol�stica, o papel da raz�o educada filosoficamente torna-se ainda mais not�vel sob o impulso da interpreta��o anselmiana do intelectus fidei. Segundo o santo Arcebispo de Cantu�ria, a prioridade da f� n�o faz concorr�ncia investiga��o pr�pria da raz�o. De facto, esta n�o chamada a exprimir um ju�zo sobre os conte�dos da f�; seria incapaz disso, porque n�o id�nea. A sua tarefa �, antes, saber encontrar um sentido, descobrir raz�es que a todos permitam alcan�ar algum entendimento dos conte�dos da f�. Santo Anselmo sublinha o facto de que o intelecto deve p�r-se procura daquilo que ama: quanto mais ama, mais deseja conhecer. Quem vive para a verdade, tende para uma forma de conhecimento que se inflama num amor sempre maior por aquilo que conhece, embora admita que ainda n�o fizera tudo aquilo que estaria no seu desejo: Ad te videndum factus sum; et nondum feci propter quod factus sum �. (42) Assim, o desejo da verdade impele a raz�o a ir sempre mais al�m; esta fica como que embevecida pela constata��o de que a sua capacidade sempre maior do que aquilo que alcan�a. Chegada aqui, por�m, a raz�o capaz de descobrir onde est� o termo do seu caminho: Penso efectivamente que, quem investiga uma coisa incompreens�vel, se deve contentar de chegar, pela raz�o, a reconhecer com a m�xima certeza a sua exist�ncia real, embora n�o seja capaz de penetrar, pela intelig�ncia, o seu modo de ser (...). Ali�s, que h� de t�o incompreens�vel e inef�vel como aquilo que est� acima de tudo? Portanto, se aquilo de cuja ess�ncia suprema discutimos at� agora, ficou estabelecido sobre raz�es necess�rias, ainda que a intelig�ncia n�o o possa penetrar de forma a conseguir traduzi-lo em palavras claras, nem por isso vacila minimamente o fundamento da sua certeza. Com efeito, se uma reflex�o anterior compreendeu de maneira racional que incompreens�vel (rationabiliter comprehendit incomprehensibile esse) o modo como a sabedoria suprema sabe aquilo que fez (...) , quem explicar� como ela mesma se conhece e exprime, dado que sobre ela o homem nada ou quase nada pode saber? �. (43)
Confirma-se assim, uma vez mais, a harmonia fundamental entre o conhecimento filos�fico e o conhecimento da f�: a f� requer que o seu objecto seja compreendido com a ajuda da raz�o; por sua vez a raz�o, no apogeu da sua indaga��o, admite como necess�rio aquilo que a f� apresenta.
2. A novidade perene do pensamento de S. Tom�s de Aquino
43. Neste longo caminho, ocupa um lugar absolutamente especial S. Tom�s, n�o s� pelo conte�do da sua doutrina, mas tamb�m pelo di�logo que soube instaurar com o pensamento �rabe e hebreu do seu tempo. Numa �poca em que os pensadores crist�os voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga, e mais directamente da filosofia aristot�lica, ele teve o grande m�rito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a raz�o e a f�. A luz da raz�o e a luz da f� prov�m ambas de Deus: argumentava ele; por isso, n�o se podem contradizer entre si. (44)
Indo mais longe, S. Tom�s reconhece que a natureza, objecto pr�prio da filosofia, pode contribuir para a compreens�o da revela��o divina. Deste modo, a f� n�o teme a raz�o, mas solicita-a e confia nela. Como a gra�a sup�e a natureza e leva-a perfei��o, (45) assim tamb�m a f� sup�e e aperfei�oa a raz�o. Esta, iluminada pela f�, fica liberta das fraquezas e limita��es causadas pela desobedi�ncia do pecado, e recebe a for�a necess�ria para elevar-se at� ao conhecimento do mist�rio de Deus Uno e Trino. Embora sublinhando o car�cter sobrenatural da f�, o Doutor Ang�lico n�o esqueceu o valor da racionabilidade da mesma; antes, conseguiu penetrar profundamente e especificar o sentido de tal racionabilidade. Efectivamente, a f� de algum modo exercita��o do pensamento �; a raz�o do homem n�o anulada nem humilhada, quando presta assentimento aos conte�dos de f�; que estes s�o alcan�ados por decis�o livre e consciente. (46)
Precisamente por este motivo que S. Tom�s foi sempre proposto pela Igreja como mestre de pensamento e modelo quanto ao recto modo de fazer teologia. Neste contexto, apraz-me recordar o que escreveu o meu Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, por ocasi�o do s�timo centen�rio da morte do Doutor Ang�lico: Sem d�vida, S. Tom�s possuiu, no m�ximo grau, a coragem da verdade, a liberdade de esp�rito quando enfrentava os novos problemas, a honestidade intelectual de quem n�o admite a contamina��o do cristianismo pela filosofia profana, mas t�o pouco defende a rejei��o aprior�stica desta. Por isso, passou hist�ria do pensamento crist�o como um pioneiro no novo caminho da filosofia e da cultura universal. O ponto central e como que a ess�ncia da solu��o que ele deu ao problema novamente posto da contraposi��o entre raz�o e f�, com a genialidade do seu intuito prof�tico, foi o da concilia��o entre a secularidade do mundo e a radicalidade do Evangelho, evitando, por um lado, aquela tend�ncia anti-natural que nega o mundo e seus valores, mas, por outro, sem faltar �s exig�ncias supremas e inabal�veis da ordem sobrenatural �. (47)
44. Entre as grandes intui��es de S. Tom�s, conta-se a de atribuir ao Esp�rito Santo o papel de fazer amadurecer, como sapi�ncia, a ci�ncia humana. Desde as primeiras p�ginas da Summa theologi�, (48) o Aquinate quis mostrar o primado daquela sapi�ncia que dom do Esp�rito Santo e que introduz no conhecimento das realidades divinas. A sua teologia permite compreender a peculiaridade da sapi�ncia na sua liga��o �ntima com a f� e o conhecimento de Deus: conhece por conaturalidade, pressup�e a f� e chega a formular rectamente o seu ju�zo a partir da verdade da pr�pria f�: A sapi�ncia elencada entre os dons do Esp�rito Santo distinta da mencionada entre as virtudes intelectuais. De facto, esta segunda adquire-se pelo estudo; aquela, pelo contr�rio, "prov�m do alto", como diz S. Tiago. Mas tamb�m distinta da f�, porque esta aceita a verdade divina tal como �, enquanto pr�prio do dom da sapi�ncia julgar segundo a verdade divina �. (49)
Mas, ao reconhecer a prioridade desta sapi�ncia, o Doutor Ang�lico n�o esquece a exist�ncia de mais duas formas complementares de sabedoria: a filos�fica, que se baseia sobre a capacidade que tem o intelecto, dentro dos pr�prios limites naturais, de investigar a realidade; e a sabedoria teol�gica, que se fundamenta na Revela��o e examina os conte�dos da f�, alcan�ando o pr�prio mist�rio de Deus.
Intimamente convencido de que omne verum a quocumque dicatur a Spiritu Sancto est �, (50) S. Tom�s amou desinteressadamente a verdade. Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se, colocando em relevo a sua universalidade. Nele, o Magist�rio da Igreja viu e apreciou a paix�o pela verdade; o seu pensamento, precisamente porque se mant�m sempre no horizonte da verdade universal, objectiva e transcendente, atingiu alturas que a intelig�ncia humana jamais poderia ter pensado �.(51) �, pois, com raz�o que S. Tom�s pode ser definido ap�stolo da verdade �.(52) Porque se consagrou sem reservas verdade, no seu realismo soube reconhecer a sua objectividade. A sua filosofia verdadeiramente uma filosofia do ser, e n�o do simples aparecer.
3. O drama da separa��o da f� e da raz�o45. Quando surgiram as primeiras universidades, a teologia come�ou a relacionar-se mais directamente com outras formas da pesquisa e do saber cient�fico. Santo Alberto Magno e S. Tom�s, embora admitindo uma liga��o org�nica entre a filosofia e a teologia, foram os primeiros a reconhecer filosofia e �s ci�ncias a autonomia de que precisavam para se debru�ar eficazmente sobre os respectivos campos de investiga��o. Todavia, a partir da baixa Idade M�dia, essa distin��o leg�tima entre os dois conhecimentos transformou-se progressivamente em nefasta separa��o. Devido ao esp�rito excessivamente racionalista de alguns pensadores, radicalizaram-se as posi��es, chegando-se, de facto, a uma filosofia separada e absolutamente aut�noma dos conte�dos da f�. Entre as v�rias consequ�ncias de tal separa��o, sobressai a difid�ncia cada vez mais forte contra a pr�pria raz�o. Alguns come�aram a professar uma desconfian�a geral, c�ptica ou agn�stica, quer para reservar mais espa�o f�, quer para desacreditar qualquer poss�vel refer�ncia racional mesma.
Em resumo, tudo o que o pensamento patr�stico e medieval tinha concebido e actuado como uma unidade profunda, geradora dum conhecimento capaz de chegar �s formas mais altas da especula��o, foi realmente destru�do pelos sistemas que abra�aram a causa de um conhecimento racional, separado e alternativo da f�.
46. As radicaliza��es mais influentes s�o bem conhecidas e vis�veis, sobretudo na hist�ria do Ocidente. N�o exagerado afirmar que boa parte do pensamento filos�fico moderno se desenvolveu num progressivo afastamento da revela��o crist� at� chegar explicitamente contraposi��o. No s�culo passado, este movimento tocou o seu apogeu. Alguns representantes do idealismo procuraram, de diversos modos, transformar a f� e os seus conte�dos, inclusive o mist�rio da morte e ressurrei��o de Jesus Cristo, em estruturas dial�cticas racionalmente compreens�veis. Mas a esta concep��o, opuseram-se diversas formas de humanismo ateu, elaboradas filosoficamente, que apontaram a f� como prejudicial e alienante para o desenvolvimento pleno do uso da raz�o. N�o tiveram medo de se apresentar como novas religi�es, dando base a projectos que desembocaram, no plano pol�tico e social, em sistemas totalit�rios traum�ticos para a humanidade.
No �mbito da investiga��o cient�fica, foi-se impondo uma mentalidade positivista, que n�o apenas se afastou de toda a refer�ncia vis�o crist� do mundo, mas sobretudo deixou cair qualquer alus�o vis�o metaf�sica e moral. Por causa disso, certos cientistas, privados de qualquer referimento �tico, correm o risco de n�o manterem, ao centro do seu interesse, a pessoa e a globalidade da sua vida. Mais, alguns deles, cientes das potencialidades contidas no progresso tecnol�gico, parecem ceder l�gica do mercado e ainda tenta��o dum poder demi�rgico sobre a natureza e o pr�prio ser humano.
Como consequ�ncia da crise do racionalismo, apareceu o niilismo. Enquanto filosofia do nada, consegue exercer um certo fasc�nio sobre os nossos contempor�neos. Os seus seguidores defendem a pesquisa como fim em si mesma, sem esperan�a nem possibilidade alguma de alcan�ar a meta da verdade. Na interpreta��o niilista, a exist�ncia somente uma oportunidade para sensa��es e experi�ncias onde o ef�mero det�m o primado. O niilismo est� na origem duma mentalidade difusa, segundo a qual n�o se deve assumir qualquer compromisso definitivo, porque tudo fugaz e provis�rio.
47. Por outro lado, preciso n�o esquecer que, na cultura moderna, foi alterada a pr�pria fun��o da filosofia. De sabedoria e saber universal que era, foi-se progressivamente reduzindo a uma das muitas �reas do saber humano; mais, sob alguns dos seus aspectos, ficou reduzida a um papel completamente marginal. Entretanto, foram-se consolidando sempre mais outras formas de racionalidade, pondo assim em evid�ncia o car�cter marginal do saber filos�fico. Em vez de apontarem para a contempla��o da verdade e a busca do fim �ltimo e do sentido da vida, essas formas de racionalidade s�o orientadas, ou pelo menos orient�veis, como raz�o instrumental ao servi�o de fins utilitaristas, de prazer ou de poder.
Quanto seja perigoso absolutizar esta estrada, fi-lo notar j� na minha primeira carta enc�clica, ao escrever: O homem de hoje parece estar sempre amea�ado por aquilo mesmo que produz, ou seja, pelo resultado do trabalho das suas m�os e, ainda mais, pelo resultado do trabalho da sua intelig�ncia e das tend�ncias da sua vontade. Os frutos desta multiforme actividade do homem, com grande rapidez e de modo muitas vezes imprevis�vel, passam a ser n�o tanto objecto de "aliena��o", no sentido de que s�o simplesmente tirados �queles que os produzem, como sobretudo, pelo menos parcialmente, num c�rculo consequente e indirecto dos seus efeitos, tais frutos voltam-se contra o pr�prio homem. Eles s�o de facto dirigidos, ou podem s�-lo, contra o homem. Nisto parece consistir o acto principal do drama da exist�ncia humana contempor�nea, na sua dimens�o mais ampla e universal. Assim, o homem vive mergulhado cada vez mais no medo. Teme que os seus produtos, naturalmente n�o todos nem a maior parte, mas alguns e precisamente aqueles que encerram uma especial por��o da sua genialidade e da sua iniciativa, possam ser voltados de maneira radical contra si mesmo �. (53)
Na sequ�ncia destas transforma��es culturais, alguns fil�sofos, abandonando a busca da verdade por si mesma, assumiram como �nico objectivo a obten��o da certeza subjectiva ou da utilidade pr�tica. Em consequ�ncia, deu-se o obscurecimento da verdadeira dignidade da raz�o, impossibilitada de conhecer a verdade e de procurar o absoluto.
48. Assim, o dado saliente desta �ltima parte da hist�ria da filosofia a constata��o duma progressiva separa��o entre a f� e a raz�o filos�fica. verdade que, observando bem, mesmo na reflex�o filos�fica daqueles que contribu�ram para ampliar a dist�ncia entre f� e raz�o, se manifestam �s vezes g�rmenes preciosos de pensamento que, se aprofundados e desenvolvidos com mente e cora��o recto, podem fazer descobrir o caminho da verdade. Estes g�rmenes de pensamento podem-se encontrar, por exemplo, nas profundas an�lises sobre a percep��o e a experi�ncia, a imagina��o e o inconsciente, sobre a personalidade e a intersubjectividade, a liberdade e os valores, o tempo e a hist�ria. Inclusive o tema da morte pode tornar-se, para todo o pensador, um severo apelo a procurar dentro de si mesmo o sentido aut�ntico da pr�pria exist�ncia. Todavia isto n�o pode fazer esquecer a necessidade que a actual rela��o entre f� e raz�o tem de um cuidadoso esfor�o de discernimento, porque tanto a raz�o como a f� ficaram reciprocamente mais pobres e d�beis. A raz�o, privada do contributo da Revela��o, percorreu sendas marginais com o risco de perder de vista a sua meta final. A f�, privada da raz�o, p�s em maior evid�ncia o sentimento e a experi�ncia, correndo o risco de deixar de ser uma proposta universal. ilus�rio pensar que, tendo pela frente uma raz�o d�bil, a f� goze de maior incid�ncia; pelo contr�rio, cai no grave perigo de ser reduzida a um mito ou supersti��o. Da mesma maneira, uma raz�o que n�o tenha pela frente uma f� adulta n�o estimulada a fixar o olhar sobre a novidade e radicalidade do ser.
� luz disto, creio justificado o meu apelo veemente e incisivo para que a f� e a filosofia recuperem aquela unidade profunda que as torna capazes de serem coerentes com a sua natureza, no respeito da rec�proca autonomia. Ao desassombro (parresia) da f� deve corresponder a aud�cia da raz�o.
CAP�TULO V1. O discernimento do Magist�rio como diaconia da verdade
49. A Igreja n�o prop�e uma filosofia pr�pria, nem canoniza uma das correntes filos�ficas em detrimento de outras. (54) A raz�o profunda desta reserva est� no facto de que a filosofia, mesmo quando entra em rela��o com a teologia, deve proceder segundo os seus m�todos e regras; caso contr�rio, n�o haveria garantia de permanecer orientada para a verdade, tendendo para a mesma atrav�s dum processo racionalmente control�vel. Pouca ajuda daria uma filosofia que n�o agisse luz da raz�o, segundo princ�pios pr�prios e espec�ficas metodologias. Fundamentalmente, a raiz da autonomia de que goza a filosofia, h� que individu�-la no facto de a raz�o estar orientada, por sua natureza, para a verdade e dotada em si mesma dos meios necess�rios para a alcan�ar. Uma filosofia, ciente deste seu estatuto constitutivo �, n�o pode deixar de respeitar as exig�ncias e evid�ncias pr�prias da verdade revelada.
E, todavia, vimos, na hist�ria, os extravios e erros em que v�rias vezes incorreu o pensamento filos�fico, sobretudo moderno. N�o fun��o nem compet�ncia do Magist�rio intervir para colmar as lacunas dum discurso filos�fico carente. Mas, j� sua obriga��o reagir, de forma clara e vigorosa, quando teses filos�ficas discut�veis amea�am a recta compreens�o do dado revelado e quando se difundem teorias falsas e sect�rias que semeiam erros graves, perturbando a simplicidade e a pureza da f� do povo de Deus.
50. Por conseguinte, o Magist�rio eclesi�stico pode, e deve, exercer com autoridade, luz da f�, o discernimento cr�tico sobre filosofias e afirma��es que contradigam a doutrina crist�. (55) Ao Magist�rio compete, antes de mais, indicar os pressupostos e as conclus�es filos�ficas que s�o incompat�veis com a verdade revelada, formulando assim as exig�ncias que, do ponto de vista da f�, se imp�em filosofia. Al�m disso, no desenvolvimento do saber filos�fico, surgiram diversas escolas de pensamento; ora, este pluralismo imp�e ao Magist�rio a responsabilidade de exprimir o seu ju�zo sobre a compatibilidade ou incompatibilidade das concep��es de base, defendidas por essas escolas, com as exig�ncias pr�prias da palavra de Deus e da reflex�o teol�gica.
A Igreja tem o dever de indicar aquilo que pode existir, num sistema filos�fico, de incompat�vel com a sua f�. Na verdade, muitos conte�dos filos�ficos relativos, por exemplo, a Deus, ao homem, sua liberdade e ao seu comportamento �tico �, t�m a ver directamente com a Igreja, porque tocam na verdade revelada que ela guarda. Quando n�s, Bispos, realizamos o referido discernimento, temos a obriga��o de ser testemunhas da verdade �, no cumprimento dum servi�o humilde, mas firme, que todo o fil�sofo devia prezar, em benef�cio da recta ratio, ou seja, da raz�o que reflecte correctamente sobre a verdade.
51. Em todo o caso, tal discernimento n�o deve ser visto primariamente de forma negativa, como se a inten��o do Magist�rio fosse eliminar ou reduzir qualquer possibilidade de media��o; ao contr�rio, as suas interven��es visam em primeiro lugar suscitar, promover e encorajar o pensamento filos�fico. Os fil�sofos s�o, ali�s, os primeiros a compreender a exig�ncia de autocr�tica, de correc��o de eventuais erros, e a necessidade de ultrapassar os limites demasiado estreitos em que a sua reflex�o foi concebida. De modo particular, deve-se considerar que a verdade uma s�, embora as suas express�es acusem os vest�gios da hist�ria e sejam, al�m disso, obra duma raz�o humana ferida e enfraquecida pelo pecado. Daqui se conclui que nenhuma forma hist�rica da filosofia pode, legitimamente, ter a pretens�o de abra�ar a totalidade da verdade ou de possuir a explica��o cabal do ser humano, do mundo e da rela��o do homem com Deus.
E hoje, com esta multiplica��o de sistemas, m�todos, conceitos e argumentos filos�ficos, muitas vezes extremamente fragment�rios, imp�e-se ainda com maior urg�ncia um discernimento cr�tico luz da f�. Este discernimento n�o f�cil, porque, se j� custoso reconhecer as capacidades naturais e inalien�veis da raz�o com as suas limita��es constitutivas e hist�ricas, mais problem�tico ainda se pode tornar �s vezes o discernimento de cada uma das propostas filos�ficas para verificar, do ponto de vista da f�, o que apresentam de v�lido e fecundo e o que existe nelas de errado ou perigoso. De qualquer modo, a Igreja sabe que os tesouros da sabedoria e da ci�ncia est�o escondidos em Cristo (Col 2, 3); por isso, ela interv�m, estimulando a reflex�o filos�fica, para que n�o se obstrua a estrada que leva ao conhecimento do mist�rio.
52. N�o foi s� recentemente que o Magist�rio da Igreja interveio para manifestar o seu pensamento a respeito de determinadas doutrinas filos�ficas. A t�tulo de exemplo, basta recordar, no decurso dos s�culos, as tomadas de posi��o acerca das teorias que defendiam a preexist�ncia das almas, (56) e ainda sobre as diversas formas de idolatria e esoterismo supersticioso, contidas em teses astrol�gicas; (57) sem esquecer os textos mais sistem�ticos contra algumas teses do averro�smo latino, incompat�veis com a f� crist�. (58)
Se a palavra do Magist�rio se fez ouvir mais frequentemente a partir da segunda metade do s�culo passado, foi porque, naquele per�odo, numerosos cat�licos sentiram o dever de contrapor uma filosofia pr�pria �s v�rias correntes do pensamento moderno. Daqui resultou, para o Magist�rio da Igreja, a obriga��o de vigiar a fim de que tais filosofias n�o degenerassem, por sua vez, em formas err�neas e negativas. Acabaram assim censurados os dois extremos: dum lado, o fide�smo (59) e o tradicionalismo radical,(60) pela sua falta de confian�a nas capacidades naturais da raz�o; e, do outro, o racionalismo (61) e o ontologismo, (62) porque atribu�am raz�o natural aquilo que apenas se pode conhecer pela luz da f�. Os conte�dos positivos deste debate foram formalizados na constitui��o dogm�tica Dei Filius, por meio da qual um conc�lio ecum�nico o Vaticano I intervinha, pela primeira vez e de forma solene, sobre as rela��es entre raz�o e f�. A doutrina contida neste texto marcou, intensa e positivamente, a investiga��o filos�fica de muitos crentes e constitui ainda hoje um ponto normativo de refer�ncia para uma correcta e coerente reflex�o crist� neste �mbito particular.
53. Mais do que teses filos�ficas isoladas, as tomadas de posi��o do Magist�rio ocuparam-se da necessidade do conhecimento racional e por conseguinte, em �ltima an�lise, do conhecimento filos�fico para a compreens�o da f�. O Conc�lio Vaticano I, sintetizando e confirmando solenemente os ensinamentos que o Magist�rio pontif�cio tinha proposto aos fi�is de maneira ordin�ria e constante, p�s em evid�ncia como s�o insepar�veis e ao mesmo tempo irredut�veis entre si o conhecimento natural de Deus e a Revela��o, a raz�o e a f�. O Conc�lio partia da exig�ncia fundamental pressuposta tamb�m pela Revela��o da cognoscibilidade natural da exist�ncia de Deus, princ�pio e fim de todas as coisas, (63) para concluir com a solene afirma��o j� citada: Existem duas ordens de conhecimento, distintas n�o apenas pelo seu princ�pio, mas tamb�m pelo seu objecto �. (64) que era preciso afirmar, contra qualquer forma de racionalismo, a distin��o entre os mist�rios da f� e as conclus�es filos�ficas, e ainda a transcend�ncia e preced�ncia daqueles sobre estas; por outro lado, contra as tenta��es fide�stas, tornava-se necess�rio corroborar a unidade da verdade e tamb�m o contributo positivo que o conhecimento racional pode, e deve, dar para o conhecimento da f�: Mas, embora a f� esteja acima da raz�o, n�o poder� existir nunca uma verdadeira diverg�ncia entre f� e raz�o, porque o mesmo Deus que revela os mist�rios e comunica a f�, foi quem colocou tamb�m, no esp�rito humano, a luz da raz�o. E Deus n�o poderia negar-Se a Si mesmo, pondo a verdade em contradi��o com a verdade �.(65)
54. Neste s�culo, o Magist�rio voltou v�rias vezes ao mesmo assunto, alertando contra a tenta��o racionalista. neste horizonte que se devem colocar as interven��es do Papa S. Pio X, pondo em relevo como, na base do modernismo, havia posi��es filos�ficas de linha fenomenista, agn�stica e imanentista.(66) E n�o se pode esquecer a import�ncia que teve a rejei��o cat�lica da filosofia marxista e do comunismo ateu.(67)
Sucessivamente, o Papa Pio XII fez ouvir a sua voz quando, na carta enc�clica Humani generis, preveniu contra interpreta��es err�neas que andavam ligadas com as teses do evolucionismo, do existencialismo e do historicismo. Explicava ele que estas teses n�o foram elaboradas nem eram propostas por te�logos, mas tinham a sua origem fora do redil de Cristo �; (68) acrescentava, por�m, que tais extravios n�o deviam ser liminarmente rejeitados, mas examinados criticamente: Ora, estas tend�ncias, que se afastam em medida desigual da recta via, n�o podem ser ignoradas ou transcuradas pelos fil�sofos e te�logos cat�licos, que t�m o grave dever de defender a verdade divina e humana, e de faz�-la penetrar na mente dos homens. Pelo contr�rio, devem conhecer bem estas opini�es, quer porque as doen�as n�o podem ser curadas, se primeiro n�o s�o bem conhecidas, quer porque algumas vezes mesmo nas afirma��es falsas se esconde um pouco de verdade, quer finalmente porque os pr�prios erros for�am a nossa mente a investigar e a perscrutar, com maior dilig�ncia, certas verdades filos�ficas e teol�gicas �.(69)
Por �ltimo, tamb�m a Congrega��o da Doutrina da F�, no cumprimento do seu m�nus espec�fico ao servi�o do magist�rio universal do Romano Pont�fice, (70) teve de intervir para sublinhar o perigo que comportava a assun��o acr�tica, feita por alguns te�logos da liberta��o, de teses e metodologias provenientes do marxismo. (71)
Vemos assim que, no passado, o Magist�rio exerceu reiteradamente e sob diversas modalidades o discernimento em mat�ria filos�fica. Aquilo que os meus Venerados Predecessores enunciaram, constitui um contributo precioso que n�o pode ser esquecido.
55. Se observarmos a situa��o actual, constatamos que os problemas retornam, mas com peculiaridades novas. J� n�o se trata de quest�es que interessam apenas a indiv�duos ou grupos, mas de convic��es t�o generalizadas no ambiente que se tornam, em certa medida, mentalidade comum. Tal �, por exemplo, a desconfian�a radical na raz�o, que evidenciam as conclus�es mais recentes de muitos estudos filos�ficos. De v�rias partes ouviu-se falar, a este respeito, de fim da metaf�sica �: querem que a filosofia se contente com tarefas mais modestas, tais como a mera interpreta��o dos factos ou apenas a investiga��o sobre determinados campos do saber humano ou das suas estruturas.
Tamb�m, na teologia, voltam a assomar as tenta��es de outrora. Por exemplo, em algumas teologias contempor�neas comparece novamente um certo racionalismo, principalmente quando asser��es, consideradas filosoficamente fundadas, s�o tomadas como normativas para a investiga��o teol�gica. Isto sucede sobretudo quando o te�logo, por falta de compet�ncia filos�fica, se deixa condicionar de modo acr�tico por afirma��es que j� entraram na linguagem e cultura corrente, mas carecem de suficiente base racional. (72)
N�o faltam tamb�m perigosas reca�das no fide�smo, que n�o reconhece a import�ncia do conhecimento racional e do discurso filos�fico para a compreens�o da f�, melhor, para a pr�pria possibilidade de acreditar em Deus. Uma express�o, hoje generalizada, desta tend�ncia fide�sta o biblicismo �, que tende a fazer da leitura da Sagrada Escritura, ou da sua exegese, o �nico referencial da verdade. Assim, acaba-se por identificar a palavra de Deus s� com a Sagrada Escritura, anulando deste modo a doutrina da Igreja que o Conc�lio Ecum�nico Vaticano II expressamente reafirmou. Com efeito, a constitui��o Dei Verbum, depois de recordar que a palavra de Deus est� presente tanto nos textos sagrados como na Tradi��o, (73) afirma sem rodeios: A Sagrada Tradi��o e a Sagrada Escritura constituem um s� dep�sito sagrado da palavra de Deus, confiado Igreja; aderindo a este, todo o Povo santo persevera unido aos seus Pastores na doutrina dos Ap�stolos �.(74) Portanto, a Sagrada Escritura n�o constitui, para a Igreja, a sua �nica refer�ncia; a regra suprema da sua f� (75) prov�m efectivamente da unidade que o Esp�rito estabeleceu entre a Sagrada Tradi��o, a Sagrada Escritura e o Magist�rio da Igreja, numa reciprocidade tal que os tr�s n�o podem subsistir de maneira independente.(76)
Al�m disso, n�o se deve subestimar o perigo que existe quando se quer individuar a verdade da Sagrada Escritura com a aplica��o de uma �nica metodologia, esquecendo a necessidade de uma exegese mais ampla que permita o acesso, em uni�o com toda a Igreja, ao sentido pleno dos textos. Os que se dedicam ao estudo da Sagrada Escritura nunca devem esquecer que as diversas metodologias hermen�uticas t�m tamb�m na sua base uma concep��o filos�fica: preciso examin�-las com grande discernimento, antes de as aplicar aos textos sagrados.
Outras formas de fide�smo latente podem-se identificar na pouca considera��o que reservada teologia especulativa, e ainda no desprezo pela filosofia cl�ssica, de cujas no��es provieram os termos para exprimir tanto a compreens�o da f� como as pr�prias formula��es dogm�ticas. O Papa Pio XII, de veneranda mem�ria, alertou contra este esquecimento da tradi��o filos�fica e abandono das terminologias tradicionais. (77)
56. Constata-se, enfim, uma generalizada desconfian�a relativamente a asser��es globais e absolutas sobretudo da parte de quem pensa que a verdade resulte do consenso, e n�o da conformidade do intelecto com a realidade objectiva. Compreende-se que, num mundo subdividido em tantos campos de especializa��es, se torne dif�cil reconhecer aquele sentido total e �ltimo da vida que tradicionalmente a filosofia procurava. Mas nem por isso posso, luz da f� que reconhece em Jesus Cristo tal sentido �ltimo, deixar de encorajar os fil�sofos, crist�os ou n�o, a terem confian�a nas capacidades da raz�o humana e a n�o prefixarem metas demasiado modestas sua investiga��o filos�fica. A li��o da hist�ria deste mil�nio, quase a terminar, testemunha que a estrada a seguir esta: n�o perder a paix�o pela verdade �ltima, nem o anseio de pesquisa, unidos aud�cia de descobrir novos percursos. a f� que incita a raz�o a sair de qualquer isolamento e a abra�ar de bom grado qualquer risco por tudo o que belo, bom e verdadeiro. Deste modo, a f� torna-se advogada convicta e convincente da raz�o.
2. Solicitude da Igreja pela filosofia57. O Magist�rio, por�m, n�o se limitou a p�r em destaque os erros e desvios das doutrinas filos�ficas. Mas, com igual cuidado, quis confirmar os princ�pios fundamentais para uma genu�na renova��o do pensamento filos�fico, indicando mesmo percursos concretos a seguir. Nesta linha, o Papa Le�o XIII, com a carta enc�clica �terni Patris, realizou um passo de alcance verdadeiramente hist�rico na vida da Igreja. Efectivamente aquela constitui, at� ao dia de hoje, o �nico documento pontif�cio dedicado, a esse n�vel, inteiramente filosofia. O grande Pont�fice retomou e desenvolveu a doutrina do Conc�lio Vaticano I sobre a rela��o entre f� e raz�o, mostrando como o pensamento filos�fico um contributo fundamental para a f� e para a ci�ncia teol�gica. (78) Passado mais de um s�culo, muitas indica��es, l� contidas, nada perderam do seu interesse tanto do ponto de vista pr�tico como pedag�gico; a primeira de todas a que diz respeito ao valor incompar�vel da filosofia de S. Tom�s. A reposi��o do pensamento do Doutor Ang�lico era vista pelo Papa Le�o XIII como a melhor estrada para se recuperar um uso da filosofia conforme �s exig�ncias da f�. S. Tom�s, escrevia ele, ao mesmo tempo que, como devido, distingue perfeitamente a f� da raz�o, une-as a ambas com la�os de amizade rec�proca: conserva os direitos pr�prios de cada uma e salvaguarda a sua dignidade �.(79)
58. S�o conhecidas as felizes consequ�ncias que teve este convite pontif�cio. Os estudos sobre o pensamento de S. Tom�s e doutros autores escol�sticos receberam novo incentivo. Foi dado um forte impulso aos estudos hist�ricos, de que resultou uma nova descoberta das riquezas do pensamento medieval, at� ent�o amplamente desconhecidas, e constitu�ram-se novas escolas tomistas. Com a aplica��o da metodologia hist�rica, fizeram-se grandes progressos no conhecimento da obra de S. Tom�s, e muitos foram os estudiosos que corajosamente introduziram a tradi��o tomista nas discuss�es dos problemas filos�ficos e teol�gicos daquele tempo. Os te�logos cat�licos mais influentes deste s�culo, a cuja reflex�o e pesquisa muito deve o Conc�lio Vaticano II, s�o filhos de tal renova��o da filosofia tomista. E assim a Igreja p�de, no decurso do s�culo XX, dispor dum vigoroso grupo de pensadores, formados na escola do Doutor Ang�lico.
59. Contudo, a renova��o tomista e neotomista n�o foi o �nico sinal de retoma do pensamento filos�fico na cultura de inspira��o crist�. J� antes, e contempor�neamente ao convite do Papa Le�o XIII, tinham surgido v�rios fil�sofos cat�licos que, valendo-se de correntes de pensamento mais recentes e com uma metodologia pr�pria, geraram obras filos�ficas de grande influ�ncia e valor duradouro. Houve quem tivesse organizado s�nteses de n�vel t�o alto que nada tinham a invejar aos grandes sistemas do idealismo, e quem pusesse as bases epistemol�gicas para uma nova exposi��o da f�, luz de uma renovada compreens�o da consci�ncia moral; houve quem tivesse elaborado uma filosofia que, partindo da an�lise da iman�ncia, abria o caminho para o transcendente, e quem tentasse traduzir as exig�ncias da f� no horizonte da metodologia fenomenol�gica. Em suma, partindo de diversas perspectivas, continuou-se a elaborar formas de reflex�o filos�fica, que visavam manter viva a grande tradi��o do pensamento crist�o na unidade de f� e raz�o.
60. O Conc�lio Ecum�nico Vaticano II, por sua vez, apresenta uma doutrina muito rica e fecunda a prop�sito da filosofia. N�o posso esquecer, sobretudo no contexto desta carta enc�clica, que um cap�tulo inteiro da constitui��o Gaudium et spes constitui uma esp�cie de comp�ndio de antropologia b�blica, fonte de inspira��o tamb�m para a filosofia. Naquelas p�ginas, trata-se do valor da pessoa humana criada imagem de Deus, indicam-se os motivos da sua dignidade e superioridade relativamente ao resto da cria��o, e mostra-se a capacidade transcendente da sua raz�o. (80) Na referida Constitui��o conciliar, considera-se tamb�m o problema do ate�smo e denunciam-se, juntamente com suas causas, os erros desta vis�o filos�fica, sobretudo no que diz respeito dignidade inalien�vel da pessoa e da sua liberdade. (81) E um profundo significado filos�fico reveste tamb�m o ponto culminante daquelas p�ginas, que transcrevia j� na minha primeira carta enc�clica, a Redemptor hominis, e mantive como um dos pontos de refer�ncia constante no meu magist�rio: Na realidade, o mist�rio do homem s� no mist�rio do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. Ad�o, o primeiro homem, era efectivamente figura do futuro, isto �, de Cristo Senhor. Cristo, novo Ad�o, na pr�pria revela��o do mist�rio do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua voca��o sublime �. (82)
O Conc�lio ocupou-se tamb�m do estudo da filosofia, ao qual se devem dedicar os candidatos ao sacerd�cio; s�o recomenda��es que se podem generalizar a todo o ensino crist�o. Afirma-se num dos documentos conciliares: As disciplinas filos�ficas sejam ensinadas de forma que os alunos possam adquirir, antes de mais, um conhecimento s�lido e coerente do homem, do mundo e de Deus, apoiados num patrim�nio filos�fico perenemente v�lido, tendo em conta as investiga��es filos�ficas dos tempos actuais �(83)
Estas directrizes foram depois retomadas e especificadas noutros documentos do Magist�rio, com o intuito de garantir uma s�lida forma��o filos�fica sobretudo �queles que se preparam para os estudos teol�gicos. Tamb�m eu sublinhei, em v�rias ocasi�es, a import�ncia desta forma��o filos�fica para todos os que, um dia, ter�o de enfrentar, na vida pastoral, as quest�es do mundo actual e individuar as causas de determinados comportamentos, a fim de lhes dar pronta resposta. (84)
61. Se foi necess�rio intervir, em diversas circunst�ncias, sobre este tema, reiterando o valor das intui��es do Doutor Ang�lico e insistindo a favor da aquisi��o do seu pensamento, isso ficou a dever-se tamb�m ao facto de n�o terem sido sempre observadas as directrizes do Magist�rio, com a solicitude desejada. De facto, nos anos posteriores ao Conc�lio Vaticano II, p�de observar-se, em muitas escolas cat�licas, um certo decl�nio nesta mat�ria, devido menor estima sentida n�o apenas pela filosofia escol�stica, mas pelo estudo da filosofia em geral. Com surpresa e m�goa, tenho de constatar que v�rios te�logos compartilham este desinteresse pelo estudo da filosofia.
Na base desta indiferen�a, h� diversas raz�es. Em primeiro lugar, aquela falta de confian�a na raz�o que se manifesta em grande parte da filosofia contempor�nea, abandonando em larga escala a investiga��o metaf�sica das quest�es �ltimas do homem para concentrar a sua aten��o sobre problemas particulares e regionais, �s vezes puramente formais. Depois, h� que acrescentar o equ�voco que se gerou sobretudo a respeito das ci�ncias humanas �. O Conc�lio Vaticano II afirmou, v�rias vezes, o valor positivo da pesquisa cient�fica para um conhecimento mais profundo do mist�rio do homem. (85) Mas, o convite dirigido aos te�logos para conhecerem estas ci�ncias e, se vier a prop�sito, aplic�-las correctamente nos seus estudos, n�o deve ser interpretado como uma impl�cita autoriza��o para marginalizar a filosofia, pondo-a de parte na forma��o pastoral e na pr�paratio fidei. E, finalmente, n�o se pode esquecer o interesse novamente sentido pela incultura��o da f�. Em particular, a vida das jovens Igrejas permitiu descobrir, ao lado de formas elevadas de pensamento, a presen�a de m�ltiplas express�es de sabedoria popular. Isto constitui um aut�ntico patrim�nio de cultura e de tradi��es. Todavia, o estudo dos costumes tradicionais deve ser acompanhado simultaneamente pela pesquisa filos�fica. Ser� esta que possibilitar� fazer sobressair os tra�os positivos da sabedoria popular, criando a necess�ria liga��o com o an�ncio do Evangelho.(86)
62. Desejo insistir novamente que o estudo da filosofia reveste um car�cter fundamental e indispens�vel na estrutura dos estudos teol�gicos e na forma��o dos candidatos ao sacerd�cio. N�o por acaso que o curr�culo dos estudos teol�gicos antecedido por um per�odo de tempo especialmente consagrado ao estudo da filosofia. Esta decis�o, confirmada pelo Conc�lio Ecum�nico Lateranense V, (87) tem as suas ra�zes na experi�ncia maturada durante a Idade M�dia, quando foi posta em relevo a import�ncia de uma harmonia construtiva entre o saber filos�fico e o teol�gico. Esta organiza��o dos estudos influenciou, facilitou e promoveu, embora de forma indirecta, uma boa parte do progresso da filosofia moderna. Temos um exemplo significativo na influ�ncia exercida pelas Disputationes metaphysic� de Francisco Su�rez, que eram seguidas at� mesmo nas universidades luteranas da Alemanha. Pelo contr�rio, o abandono desta metodologia foi causa de graves car�ncias, tanto na forma��o sacerdotal como na investiga��o teol�gica. Basta considerar, por exemplo, como a sua neglig�ncia no �mbito do pensamento e da cultura moderna levou ao encerramento de toda a forma de di�logo ou recep��o indiscriminada de qualquer filosofia.
Nutro profunda esperan�a de que estas dificuldades ser�o superadas merc� de uma s�bia forma��o filos�fica e teol�gica, que nunca deve faltar na Igreja.
63. Em virtude das raz�es aduzidas, senti a urg�ncia de confirmar, por meio desta carta enc�clica, o grande interesse que a Igreja tem pela filosofia; ou melhor, a liga��o �ntima do trabalho teol�gico com a investiga��o filos�fica da verdade. Daqui nasce o dever que o Magist�rio tem de discernir e estimular um pensamento filos�fico que n�o esteja em disson�ncia com a f�. A minha miss�o propor alguns princ�pios e pontos de refer�ncia, que considero necess�rios para se poder instaurar uma rela��o harmoniosa e eficaz entre a teologia e a filosofia. luz deles, ser� poss�vel discernir com maior clareza se e como deve a teologia relacionar-se com os diversos sistemas ou asser��es filos�ficas que o mundo actual apresenta.
CAP�TULO VI1. A ci�ncia da f� e as exig�ncias da raz�o filos�fica
64. A palavra de Deus destina-se a todo o homem, de qualquer �poca e lugar da terra; e o homem, por natureza, fil�sofo. Por sua vez, a teologia, enquanto elabora��o reflexiva e cient�fica da compreens�o da palavra divina luz da f�, n�o pode deixar de recorrer �s filosofias que v�o surgindo ao longo da hist�ria, tanto para algumas das suas formas de proceder como para realizar fun��es mais espec�ficas. Sem pretender indicar aos te�logos metodologias particulares porque tal n�o compete ao Magist�rio �, desejo, por�m, lembrar algumas fun��es pr�prias da teologia, onde, por causa da pr�pria natureza da Palavra revelada, se exige o recurso ao pensamento filos�fico.
65. A teologia est� organizada, enquanto ci�ncia da f�, luz dum duplo princ�pio metodol�gico: auditus fidei e intellectus fidei. Com o primeiro, recolhe os conte�dos da Revela��o tal como se foram explicitando progressivamente na Sagrada Tradi��o, na Sagrada Escritura e no Magist�rio vivo da Igreja. (88) Pelo segundo, a teologia quer responder �s exig�ncias pr�prias do pensamento, atrav�s da reflex�o especulativa.
Quanto prepara��o para um correcto auditus fidei, a filosofia proporciona teologia a sua ajuda peculiar, quando examina a estrutura do conhecimento e da comunica��o pessoal, e sobretudo as v�rias formas e fun��es da linguagem. Igualmente importante a contribui��o da filosofia para uma compreens�o mais coerente da Tradi��o eclesial, das interven��es do Magist�rio e das senten�as dos grandes mestres da teologia: estes, de facto, exprimem-se frequentemente por conceitos e formas de pensamento conotados com determinada tradi��o filos�fica. Neste caso, pede-se ao te�logo n�o s� que exponha conceitos e termos atrav�s dos quais a Igreja possa reflectir e elaborar a sua doutrina, mas que conhe�a profundamente tamb�m os sistemas filos�ficos que tenham, porventura, influenciado as no��es e a terminologia, a fim de se chegar a interpreta��es correctas e coerentes.
66. Relativamente ao intellectus fidei, importa considerar, antes de mais, que a Verdade divina, que nos proposta nas Sagradas Escrituras, interpretadas correctamente pela doutrina da Igreja �, (89) goza de uma inteligibilidade pr�pria, logicamente t�o coerente que se deve propor como um aut�ntico saber. O intellectus fidei explicita esta verdade, n�o s� quando investiga as estruturas l�gicas e conceptuais das proposi��es em que se articula a doutrina da Igreja, mas tamb�m e sobretudo quando p�e em realce o significado salv�fico de tais proposi��es para o indiv�duo e para a humanidade. pelo conjunto destas proposi��es que o crente chega a conhecer a hist�ria da salva��o, que culmina na pessoa de Jesus Cristo e no seu mist�rio pascal; ele participa deste mist�rio, com a sua ades�o de f�.
A teologia dogm�tica deve ser capaz de articular o sentido universal do mist�rio de Deus, Uno e Trino, e da economia da salva��o, quer de modo narrativo, quer sobretudo de forma argumentativa. Por outras palavras, deve faz�-lo mediante express�es conceptuais, formuladas de modo cr�tico e universalmente acess�vel. De facto, sem o contributo da filosofia n�o seria poss�vel ilustrar certos conte�dos teol�gicos como, por exemplo, a linguagem sobre Deus, as rela��es pessoais no seio da Sant�ssima Trindade, a ac��o criadora de Deus no mundo, a rela��o entre Deus e o homem, a identidade de Cristo que verdadeiro Deus e verdadeiro homem. E o mesmo se diga de diversos temas da teologia moral, onde preciso recorrer, de imediato, a conceitos como lei moral, consci�ncia, liberdade, responsabilidade pessoal, culpa, etc., cuja defini��o prov�m da �tica filos�fica.
Por isso, necess�rio que a raz�o do crente tenha um conhecimento natural, verdadeiro e coerente das coisas criadas, do mundo e do homem, que s�o tamb�m objecto da revela��o divina; mais ainda, ela deve ser capaz de articular este conhecimento de maneira conceptual e argumentativa. Assim, a teologia dogm�tica especulativa pressup�e e implica uma filosofia do homem, do mundo e, mais radicalmente, do pr�prio ser, fundada sobre a verdade objectiva.
67. A teologia fundamental, pelo seu pr�prio car�cter de disciplina que tem por fun��o dar raz�o da f� (cf. 1 Ped 3, 15), dever� procurar justificar e explicitar a rela��o entre a f� e a reflex�o filos�fica. J� o Conc�lio Vaticano I, reafirmando o ensinamento paulino (cf. Rom 1, 19-20), chamara a aten��o para o facto de existirem verdades que se podem conhecer de modo natural e, consequentemente, filos�fico. O seu conhecimento constitui um pressuposto necess�rio para acolher a revela��o de Deus. Quando a teologia fundamental estuda a Revela��o e a sua credibilidade com o relativo acto de f�, dever� mostrar como emergem, luz do conhecimento pela f�, algumas verdades que a raz�o, autonomamente, j� encontra ao longo do seu caminho de pesquisa. A essas verdades, a Revela��o confere-lhes plenitude de sentido, orientando-as para a riqueza do mist�rio revelado, onde encontram o seu fim �ltimo. Basta pensar, por exemplo, ao conhecimento natural de Deus, possibilidade de distinguir a revela��o divina de outros fen�menos, ou ao conhecimento da sua credibilidade, capacidade que tem a linguagem humana de falar, de modo significativo e verdadeiro, mesmo do que ultrapassa a experi�ncia humana. Por todas estas verdades, a mente levada a reconhecer a exist�ncia duma via realmente proped�utica f�, que pode desembocar no acolhimento da Revela��o, sem faltar minimamente aos seus pr�prios princ�pios e autonomia. (90)
Da mesma forma, a teologia fundamental dever� manifestar a compatibilidade intr�nseca entre a f� e a sua exig�ncia essencial de se explicitar atrav�s de uma raz�o capaz de dar com plena liberdade o seu consentimento. Assim, a f� saber� mostrar plenamente o caminho a uma raz�o em busca sincera da verdade. Deste modo a f�, dom de Deus, apesar de n�o se basear na raz�o, decerto n�o pode existir sem ela; ao mesmo tempo, surge a necessidade de que a raz�o se fortifique na f�, para descobrir os horizontes aos quais, sozinha, n�o poderia chegar �. (91)
68. A teologia moral tem, possivelmente, uma necessidade ainda maior do contributo filos�fico. Na Nova Alian�a, a vida humana est� efectivamente muito menos regulada por prescri��es do que na Antiga. A vida no Esp�rito conduz os crentes a uma liberdade e responsabilidade que ultrapassam a pr�pria Lei. No entanto, o Evangelho e os escritos apost�licos n�o deixam de propor ora princ�pios gerais de conduta crist�, ora ensinamentos e preceitos espec�ficos; para aplic�-los �s circunst�ncias concretas da vida individual e social, o crist�o tem necessidade de valer-se plenamente da sua consci�ncia e da for�a do seu racioc�nio. Por outras palavras, a teologia moral deve recorrer a uma vis�o filos�fica correcta tanto da natureza humana e da sociedade, como dos princ�pios gerais duma decis�o �tica.
69. Talvez se possa objectar que, na situa��o actual, o te�logo, mais do que filosofia, deveria recorrer ajuda de outras formas do saber humano, concretamente hist�ria e sobretudo �s ci�ncias, de que todos admiram os progressos extraordin�rios recentemente alcan�ados. Outros, impelidos por uma maior sensibilidade rela��o entre f� e culturas, defendem que a teologia deveria dar prefer�ncia �s sabedorias tradicionais, em vez de uma filosofia de origem grega e euroc�ntrica. Outros ainda, partindo duma concep��o errada do pluralismo de culturas, negam simplesmente o valor universal do patrim�nio filos�fico abra�ado pela Igreja.
Os aspectos sublinhados, j� presentes ali�s na doutrina conciliar, (92) cont�m uma parte de verdade. O referimento �s ci�ncias, �til em muitos casos porque permite um conhecimento mais completo do objecto de estudo, n�o deve, por�m, fazer esquecer a necessidade que h� da media��o duma reflex�o tipicamente filos�fica, cr�tica e aberta ao universal, solicitada tamb�m por um fecundo interc�mbio entre as culturas. A minha preocupa��o p�r em destaque o dever de n�o se ficar pelo caso isolado e concreto, descuidando assim a tarefa prim�ria que manifestar o car�cter universal do conte�do de f�. Al�m disso, n�o se deve esquecer que a peculiar contribui��o do pensamento filos�fico permite discernir, tanto nas diversas concep��es da vida como nas culturas, n�o o que os homens pensam, mas qual a verdade objectiva �. (93) N�o as diversas opini�es humanas, mas somente a verdade pode servir de ajuda filosofia.
70. Al�m do mais, o tema da rela��o com as culturas merece uma reflex�o espec�fica, apesar de necessariamente n�o exaustiva, pelas implica��es que da� derivam para as vertentes filos�fica e teol�gica. O processo de encontro e compara��o com as culturas uma experi�ncia que a Igreja viveu desde os come�os da prega��o do Evangelho. O mandato de Cristo aos disc�pulos para irem, a toda a parte at� aos confins do mundo (Act 1, 8), transmitir a verdade revelada por Ele, fez com que a comunidade crist� pudesse bem cedo dar-se conta da universalidade do an�ncio e dos obst�culos resultantes da diversidade das culturas. Um trecho da carta de S. Paulo aos crist�os de �feso oferece uma v�lida ajuda para compreender como a Comunidade Primitiva enfrentou este problema. Escreve o Ap�stolo: Agora por�m, v�s, que outrora est�veis longe, pelo Sangue de Cristo vos aproximastes. Ele a nossa paz, Ele que de dois povos fez um s�, destruindo o muro de inimizade que os separava (2, 13-14).
Iluminada por este texto, a nossa reflex�o pode debru�ar-se sobre a transforma��o que se operou nos gentios quando abra�aram a f�. As barreiras que separam as diversas culturas caem diante da riqueza da salva��o, realizada por Cristo. Agora, em Cristo, a promessa de Deus torna-se uma oferta universal: n�o limitada j� dimens�o particular de um povo, da sua l�ngua ou dos seus costumes, mas alargada a todos, como um patrim�nio ao qual cada um pode livremente ter acesso. Dos mais diversos lugares e tradi��es, todos s�o chamados, em Cristo, a participar na unidade da fam�lia dos filhos de Deus. Cristo faz com que dois povos se tornem um s� �. Os que estavam longe ficaram pr�ximo �, gra�as novidade gerada pelo mist�rio pascal. Jesus abate os muros de divis�o e realiza a unifica��o, de um modo original e supremo, por meio da participa��o no seu mist�rio. Esta unidade t�o profunda que a Igreja pode dizer com S. Paulo: J� n�o sois h�spedes nem peregrinos, mas sois concidad�os dos santos e membros da fam�lia de Deus (Ef 2, 19).
Nesta asser��o t�o simples, est� contida uma grande verdade: o encontro da f� com as diversas culturas deu vida a uma nova realidade. Na verdade, quando as culturas est�o profundamente radicadas na natureza humana, cont�m em si mesmas o testemunho da abertura, pr�pria do homem, ao universal e transcend�ncia. por isso que elas apresentam perspectivas distintas da verdade, que s�o de evidente utilidade para o homem, porque lhe fazem vislumbrar valores capazes de tornar a sua exist�ncia sempre mais humana. (94) Por outro lado, na medida em que evocam os valores das tradi��es antigas, as culturas trazem consigo embora de modo impl�cito, mas nem por isso menos real a refer�ncia manifesta��o de Deus na natureza, como se viu antes nos textos sapienciais e no ensinamento de S. Paulo.
71. Uma vez que as culturas est�o intimamente relacionadas com os homens e a sua hist�ria, partilham das mesmas din�micas do tempo humano. E, consequentemente, registam transforma��es e progressos com os encontros que os homens promovem e com as rec�procas transmiss�es dos seus modelos de vida. As culturas alimentam-se com a comunica��o de valores, e a sua vitalidade e subsist�ncia dependem da sua capacidade de permanecerem abertas para acolher a novidade. Como se explicam tais din�micas? Todo o homem est� integrado numa cultura; depende dela, e sobre ela influi. simultaneamente filho e pai da cultura onde est� inserido. Em cada manifesta��o da sua vida, o homem traz consigo algo que o caracteriza no meio da cria��o: a sua constante abertura ao mist�rio e o seu desejo inexaur�vel de conhecimento. Em consequ�ncia, cada cultura traz gravada em si mesma e deixa transparecer a tens�o para uma plenitude. Pode-se, portanto, dizer que a cultura cont�m em si pr�pria a possibilidade de acolher a revela��o divina.
Tamb�m o modo como os crist�os vivem a f�, est� imbu�do da cultura do ambiente circundante, e vai progressivamente contribuindo, por sua vez, para modelar as caracter�sticas do mesmo. Os crist�os transmitem, a cada cultura, a verdade imut�vel que Deus revelou na hist�ria e na cultura dum povo. Ao longo dos s�culos, continua a reproduzir-se o mesmo fen�meno testemunhado pelos peregrinos presentes em Jerusal�m, no dia de Pentecostes. Ao escutarem os Ap�stolos, perguntavam-se: Mas qu�! Essa gente que est� a falar n�o da Galileia? Que se passa, ent�o, para que cada um de n�s os oi�a falar na nossa l�ngua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopot�mia, da Judeia e da Capad�cia, do Ponto e da �sia, da Fr�gia e da Panf�lia, do Egipto e das regi�es da L�bia, vizinha de Cirene, colonos de Roma, judeus e pros�litos, cretenses e �rabes, ouvimo-los anunciar nas nossas l�nguas as maravilhas de Deus! (Act 2, 7-11). O an�ncio do Evangelho nas diversas culturas, ao exigir de cada um dos destinat�rios a ades�o da f�, n�o os impede de conservar a pr�pria identidade cultural. Isto n�o provoca qualquer divis�o, pois o povo dos baptizados distingue-se por uma universalidade que capaz de acolher todas as culturas, fazendo com que aquilo que nelas est� impl�cito se desenvolva at� sua explana��o plena na verdade.
Em consequ�ncia disto, uma cultura nunca pode servir de crit�rio de ju�zo e, menos ainda, de crit�rio �ltimo de verdade a respeito da revela��o de Deus. O Evangelho n�o contr�rio a esta ou �quela cultura, como se quisesse, ao encontrar-se com ela, priv�-la daquilo que lhe pertence, e a obrigasse a assumir formas extr�nsecas que lhe s�o estranhas. Pelo contr�rio, o an�ncio que o crente leva ao mundo e �s culturas uma forma real de liberta��o de toda a desordem introduzida pelo pecado e, simultaneamente, uma chamada verdade plena. Neste encontro, as culturas n�o s�o privadas de nada, antes s�o estimuladas a abrirem-se novidade da verdade evang�lica, de que recebem impulso para novos progressos.
72. O facto da miss�o evangelizadora ter encontrado em primeiro lugar no seu caminho a filosofia grega, n�o constitui de forma alguma impedimento para outros relacionamentos. Hoje, medida que o Evangelho entra em contacto com �reas culturais que estiveram at� agora fora do �mbito de irradia��o do cristianismo, novas tarefas se abrem incultura��o. Colocam-se nossa gera��o problemas an�logos aos que a Igreja teve de enfrentar nos primeiros s�culos.
O meu pensamento vai espontaneamente at� �s terras do Oriente, t�o ricas de tradi��es religiosas e filos�ficas muito antigas. Entre elas, ocupa um lugar especial a �ndia. Um grande �mpeto espiritual leva o pensamento indiano a procurar uma experi�ncia que, libertando o esp�rito dos condicionamentos de tempo e espa�o, tenha valor de absoluto. No dinamismo desta busca de liberta��o, situam-se grandes sistemas metaf�sicos.
Compete aos crist�os de hoje, sobretudo aos da �ndia, a tarefa de extrair deste rico patrim�nio os elementos compat�veis com a sua f�, para se obter um enriquecimento do pensamento crist�o. Nesta obra de discernimento, que tem a sua fonte de inspira��o na declara��o conciliar Nostra aetate, dever�o ter em considera��o um certo n�mero de crit�rios. O primeiro a universalidade do esp�rito humano, cujas exig�ncias fundamentais s�o id�nticas nas mais distintas culturas. O segundo, derivado do anterior, consiste no seguinte: quando a Igreja entra em contacto com grandes culturas que nunca tinha encontrado antes, n�o pode p�r de parte o que adquiriu pela incultura��o no pensamento greco-latino. Rejeitar uma tal heran�a seria contrariar o des�gnio providencial de Deus, que conduz a sua Igreja pelos caminhos do tempo e da hist�ria. Ali�s, este crit�rio v�lido para a Igreja de todos os tempos tamb�m para a Igreja de amanh�, que se sentir� enriquecida com as aquisi��es resultantes do encontro em nossos dias com as culturas orientais, e desta heran�a h�-de tirar, por sua vez, indica��es novas para entrar frutuosamente em di�logo com as culturas que a humanidade fizer florir no seu caminho rumo ao futuro. Em terceiro lugar, h�-de precaver-se por n�o confundir a leg�tima reivindica��o de especificidade e originalidade do pensamento indiano, com a ideia de que uma tradi��o cultural deve enclausurar-se na sua diferen�a e afirmar-se pela sua oposi��o �s outras tradi��es ideia essa que seria contr�ria precisamente natureza do esp�rito humano.
O que fica dito para a �ndia, vale tamb�m para a heran�a das grandes culturas da China, do Jap�o e demais pa�ses da �sia, bem como das riquezas das culturas tradicionais da �frica, transmitidas sobretudo por via oral.
73. luz destas considera��es, a justa rela��o que se deve instaurar entre a teologia e a filosofia h�-de ser pautada por uma reciprocidade circular. Quanto teologia, o seu ponto de partida e fonte primeira ter� de ser sempre a palavra de Deus revelada na hist�ria, ao passo que o objectivo final s� poder� ser uma compreens�o cada vez mais profunda dessa mesma palavra por parte das sucessivas gera��es. Visto que a palavra de Deus Verdade (cf. Jo 17, 17), uma melhor compreens�o dela s� tem a beneficiar com a busca humana da verdade, ou seja, o filosofar, no respeito das leis que lhe s�o pr�prias. N�o se trata simplesmente de utilizar, no racioc�nio teol�gico, qualquer conceito ou parcela dum sistema filos�fico; o facto decisivo que a raz�o do crente exerce as suas capacidades de reflex�o na busca da verdade, dentro dum movimento que, partindo da palavra de Deus, procura alcan�ar uma melhor compreens�o da mesma. claro, de resto, que a raz�o, movendo-se dentro destes dois p�los palavra de Deus e melhor conhecimento desta �, encontra-se prevenida, e de algum modo guiada, para evitar percursos que poderiam conduzi-la fora da Verdade revelada e, em �ltima an�lise, fora pura e simplesmente da verdade; mais ainda, ela sente-se estimulada a explorar caminhos que, sozinha, nem sequer suspeitaria de poder percorrer. Esta rela��o de reciprocidade circular com a Palavra de Deus enriquece a filosofia, porque a raz�o descobre horizontes novos e inesperados.
74. A prova da fecundidade de tal rela��o oferecida pela pr�pria vida de grandes te�logos crist�os que se distinguiram tamb�m como grandes fil�sofos, deixando escritos de tamanho valor especulativo que justificam ser colocados ao lado dos grandes mestres da filosofia antiga. Isto v�lido tanto para os Padres da Igreja, de entre os quais h� que citar pelo menos os nomes de S. Greg�rio Nazianzeno e S. Agostinho, como para os Doutores medievais entre os quais sobressai a grande tr�ade formada por S. Anselmo, S. Boaventura e S. Tom�s de Aquino. A rela��o entre a filosofia e a palavra de Deus manifesta-se fecunda tamb�m na investiga��o corajosa realizada por pensadores mais recentes, de entre os quais me apraz mencionar, no �mbito ocidental, personagens como John Henry Newman, Ant�nio Rosmini, Jacques Maritain, �tienne Gilson, Edith Stein, e, no �mbito oriental, estudiosos com a estatura de Vladimir S. Solov'ev, Pavel A. Florenskij, Petr J. Caadaev, Vladimir N. Losskij. Ao referir estes autores, ao lado dos quais outros nomes poderiam ser citados, n�o tenciono obviamente dar aval a todos os aspectos do seu pensamento, mas apenas prop�-los como exemplos significativos dum caminho de pesquisa filos�fica que tirou not�veis vantagens da sua confronta��o com os dados da f�. Uma coisa certa: a considera��o do itiner�rio espiritual destes mestres n�o poder� deixar de contribuir para o avan�o na busca da verdade e na utiliza��o dos resultados conseguidos para o servi�o do homem. Espera-se que esta grande tradi��o filos�fico-teol�gica encontre, hoje e no futuro, os seus continuadores e estudiosos para bem da Igreja e da humanidade.
2. Diferentes est�dios da filosofia75. Como consta da hist�ria das rela��es entre a f� e a filosofia, apontada acima brevemente, podem distinguir-se diversos est�dios da filosofia relativamente f� crist�. O primeiro a filosofia totalmente independente da revela��o evang�lica: o est�dio da filosofia, existente historicamente nas �pocas que precederam o nascimento do Redentor, e, mesmo depois dele, nas regi�es onde o Evangelho ainda n�o chegou. Nesta situa��o, a filosofia apresenta a leg�tima aspira��o de ser um empreendimento aut�nomo, ou seja, que procede segundo as suas pr�prias leis, valendo-se simplesmente das for�as da raz�o. Embora cientes dos graves limites devidos debilidade cong�nita da raz�o humana, uma tal aspira��o deve ser apoiada e fortalecida. De facto, o trabalho filos�fico, como busca da verdade no �mbito natural, pelo menos implicitamente permanece aberto ao sobrenatural.
E, mesmo quando o pr�prio discurso teol�gico que se serve de conceitos e argumenta��es filos�ficas, a exig�ncia de correcta autonomia do pensamento h�-de ser respeitada. Com efeito, a argumenta��o conduzida segundo rigorosos crit�rios racionais garantia para a obten��o de resultados universalmente v�lidos. Tamb�m aqui se verifica o princ�pio segundo o qual a gra�a n�o destr�i, mas aperfei�oa a natureza: a anu�ncia de f�, que envolve a intelig�ncia e a vontade, n�o destr�i mas aperfei�oa o livre arb�trio do crente, que acolhe em si pr�prio o dado revelado.
Desta exig�ncia em si mesma correcta, afasta-se nitidamente a teoria da chamada filosofia separada �, sustentada por v�rios fil�sofos modernos. Mais do que afirma��o da justa autonomia do filosofar, ela constitui a reivindica��o duma auto-sufici�ncia do pensamento que claramente ileg�tima: rejeitar as contribui��es de verdade vindas da revela��o divina significa efectivamente impedir o acesso a um conhecimento mais profundo da verdade, danificando precisamente a filosofia.
76. Um segundo est�dio da filosofia aquilo que muitos designam com a express�o filosofia crist�. A denomina��o, em si mesma, leg�tima, mas n�o deve dar margem a equ�vocos: com ela, n�o se pretende aludir a uma filosofia oficial da Igreja, j� que a f� enquanto tal n�o uma filosofia. Com aquela designa��o, deseja-se sobretudo indicar um modo crist�o de filosofar, uma reflex�o filos�fica concebida em uni�o vital com a f�. Por conseguinte, n�o se refere simplesmente a uma filosofia elaborada por fil�sofos crist�os que, na sua pesquisa, quiseram n�o contradizer a f�. Quando se fala de filosofia crist�, pretende-se abra�ar todos aqueles importantes avan�os do pensamento filos�fico que n�o seriam alcan�ados sem a contribui��o, directa ou indirecta, da f� crist�.
Assim, a filosofia crist� cont�m dois aspectos: um subjectivo, que consiste na purifica��o da raz�o por parte da f�. Esta, enquanto virtude teologal, liberta a raz�o da presun��o uma t�pica tenta��o a que os fil�sofos facilmente est�o sujeitos. J� S. Paulo e os Padres da Igreja, e mais recentemente fil�sofos, como Pascal e Kierkegaard, a estigmatizaram. Com a humildade, o fil�sofo adquire tamb�m a coragem para enfrentar algumas quest�es que dificilmente poderia resolver sem ter em considera��o os dados recebidos da Revela��o. Basta pensar, por exemplo, aos problemas do mal e do sofrimento, identidade pessoal de Deus e quest�o acerca do sentido da vida, ou, mais diretamente, pergunta metaf�sica radical: Porque existe o ser? �.
Temos, depois, o aspecto objectivo, que diz respeito aos conte�dos: a Revela��o prop�e claramente algumas verdades que, embora sejam acess�veis raz�o por via natural, possivelmente nunca seriam descobertas por ela, se tivesse sido abandonada a si pr�pria. Colocam-se, neste horizonte, quest�es como o conceito de um Deus pessoal, livre e criador, que tanta import�ncia teve para o progresso do pensamento filos�fico e, de modo particular, para a filosofia do ser. Pertence ao mesmo �mbito a realidade do pecado, tal como vista pela luz da f�, e que ajuda a filosofia a enquadrar adequadamente o problema do mal. Tamb�m a concep��o da pessoa como ser espiritual uma originalidade peculiar da f�: o an�ncio crist�o da dignidade, igualdade e liberdade dos homens influiu seguramente sobre a reflex�o filos�fica, realizada pelos fil�sofos modernos. Nos tempos mais recentes, pode-se mencionar a descoberta da import�ncia que tem, tamb�m para a filosofia, o acontecimento hist�rico, centro da revela��o crist�. N�o foi por acaso que aquele se tornou perne de uma filosofia da hist�ria, que se apresenta como um novo cap�tulo da busca humana da verdade.
Entre os elementos objectivos da filosofia crist�, inclui-se tamb�m a necessidade de explorar a racionalidade de algumas verdades expressas pela Sagrada Escritura, tais como a possibilidade de uma voca��o sobrenatural do homem, e tamb�m o pr�prio pecado original. S�o tarefas que induzem a raz�o a reconhecer que existe a verdade e o racional, muito para al�m dos limites estreitos onde ela seria tentada a encerrar-se. Estas tem�ticas ampliam, de facto, o �mbito do racional.
Ao reflectirem sobre estes conte�dos, os fil�sofos n�o se tornaram te�logos, j� que n�o procuraram compreender e ilustrar as verdades da f� a partir da Revela��o; continuaram a trabalhar no seu pr�prio terreno e com a sua metodologia puramente racional, mas alargando a sua investiga��o a novos �mbitos da verdade. Pode-se dizer que, sem este influxo estimulante da palavra de Deus, boa parte da filosofia moderna e contempor�nea n�o existiria. O dado mant�m toda a sua relev�ncia, mesmo diante da constata��o decepcionante de n�o poucos pensadores destes �ltimos s�culos que abandonaram a ortodoxia crist�.
77. Outro est�dio significativo da filosofia verifica-se quando a pr�pria teologia que chama em causa a filosofia. Na verdade, a teologia sempre teve, e continua a ter, necessidade da contribui��o filos�fica. Realizado pela raz�o cr�tica luz da f�, o trabalho teol�gico pressup�e e exige, ao longo de toda a sua pesquisa, uma raz�o conceptual e argumentativamente educada e formada. Al�m disso, a teologia precisa da filosofia como interlocutora, para verificar a inteligibilidade e a verdade universal das suas afirma��es. N�o foi por acaso que os Padres da Igreja e os te�logos medievais assumiram, para tal fun��o explicativa, filosofias n�o crist�s. Este facto hist�rico indica o valor da autonomia que a filosofia conserva mesmo neste terceiro est�dio, mas mostra igualmente as transforma��es necess�rias e profundas que ela deve sofrer.
� precisamente no sentido de uma contribui��o indispens�vel e nobre que a filosofia foi chamada, desde a Idade Patr�stica, ancilla theologi�. De facto, o t�tulo n�o foi atribu�do para indicar uma submiss�o servil ou um papel puramente funcional da filosofia relativamente teologia; mas no mesmo sentido em que Arist�teles falava das ci�ncias experimentais como servas da filosofia primeira �. A express�o, hoje dificilmente utiliz�vel devido aos princ�pios de autonomia antes mencionados, foi usada ao longo da hist�ria para indicar a necessidade da rela��o entre as duas ci�ncias e a impossibilidade de uma sua separa��o.
Se o te�logo se recusasse a utilizar a filosofia, arriscar-se-ia a fazer filosofia sem o saber e a fechar-se em estruturas de pensamento pouco id�neas compreens�o da f�. Se o fil�sofo, por sua vez, exclu�sse todo o contacto com a teologia, ver-se-ia na obriga��o de apoderar-se por conta pr�pria dos conte�dos da f� crist�, como aconteceu com alguns fil�sofos modernos. Tanto num caso como noutro, surgiria o perigo da destrui��o dos princ�pios b�sicos de autonomia que cada ci�ncia justamente quer ver garantidos.
O est�dio da filosofia agora considerado, devido �s implica��es que comporta na compreens�o da Revela��o, est�, como acontece com a teologia, mais directamente colocado sob a autoridade do Magist�rio e do seu discernimento, como expus mais acima. Das verdades de f� derivam, efectivamente, determinadas exig�ncias que a filosofia deve respeitar, quando entra em rela��o com a teologia.
78. luz destas reflex�es, f�cil compreender porque tenha o Magist�rio louvado reiteradamente os m�ritos do pensamento de S. Tom�s, e o tenha proposto como guia e modelo dos estudos teol�gicos. O que interessava n�o era tomar posi��o sobre quest�es propriamente filos�ficas, nem impor a ades�o a teses particulares; o objectivo do Magist�rio era, e continua a ser, mostrar como S. Tom�s um aut�ntico modelo para quantos buscam a verdade. De facto, na sua reflex�o, a exig�ncia da raz�o e a for�a da f� encontraram a s�ntese mais elevada que o pensamento jamais alcan�ou, enquanto soube defender a novidade radical trazida pela Revela��o, sem nunca humilhar o caminho pr�prio da raz�o.
79. Ao explicitar melhor os conte�dos do Magist�rio precedente, minha inten��o, nesta �ltima parte, indicar algumas exig�ncias que a teologia e, ainda antes, a palavra de Deus coloca, hoje, ao pensamento filos�fico e �s filosofias actuais. Como j� assinalei, o fil�sofo deve proceder segundo as pr�prias regras e basear-se sobre os pr�prios princ�pios; todavia, a verdade uma s�. A Revela��o, com os seus conte�dos, n�o poder� nunca humilhar a raz�o nas suas descobertas e na sua leg�tima autonomia; a raz�o, por sua vez, n�o dever� perder nunca a sua capacidade de interrogar-se e de interrogar, consciente de n�o poder arvorar-se em valor absoluto e exclusivo. A verdade revelada, projectando plena luz sobre o ser a partir do esplendor que lhe vem do pr�prio Ser subsistente, iluminar� o caminho da reflex�o filos�fica. Em resumo, a revela��o crist� torna-se o verdadeiro ponto de enlace e confronto entre o pensar filos�fico e o teol�gico, no seu rec�proco interc�mbio. Espera-se, pois, que te�logos e fil�sofos se deixem guiar unicamente pela autoridade da verdade, para que seja elaborada uma filosofia de harmonia com a palavra de Deus. Esta filosofia ser� o terreno de encontro entre as culturas e a f� crist�, o espa�o de entendimento entre crentes e n�o crentes. Ajudar� os crentes a convencerem-se mais intimamente de que a profundidade e a autenticidade da f� saem favorecidas quando esta se une ao pensamento e n�o renuncia a ele. Mais uma vez, encontramos nos Padres a li��o que nos guia nesta convic��o: Crer, nada mais sen�o pensar consentindo [...]. Todo o que cr�, pensa; crendo pensa, e pensando cr� [...]. A f�, se n�o for pensada, nada �. (95) Mais: Se se tira o assentimento, tira-se a f�, pois, sem o assentimento, realmente n�o se cr� �. (96)
CAP�TULO VII1. As exig�ncias irrenunci�veis da palavra de Deus
80. A Sagrada Escritura cont�m, de forma expl�cita ou impl�cita, toda uma s�rie de elementos que permite alcan�ar uma perspectiva de not�vel densidade filos�fica acerca do homem e do mundo. Os crist�os foram gradualmente tomando consci�ncia da riqueza contida naquelas p�ginas sagradas. Delas se conclui que a realidade que experimentamos, n�o o absoluto: n�o incriada, nem se autogerou. S� Deus o Absoluto. Nas p�ginas da B�blia, o homem visto como imago Dei, que cont�m indica��es precisas sobre o seu ser, a sua liberdade e a imortalidade do seu esp�rito. Uma vez que o mundo criado n�o autosuficiente, qualquer ilus�o de autonomia que ignore a essencial depend�ncia de Deus de toda criatura incluindo o homem leva a dramas que destroem a busca racional da harmonia e do sentido da exist�ncia humana.
Tamb�m o problema do mal moral a forma mais tr�gica do mal � considerado na B�blia, dizendo-nos que este n�o pode ser reduzido a uma mera defici�ncia devida mat�ria, mas uma ferida que prov�m de uma manifesta��o desordenada da liberdade humana. Finalmente, a palavra de Deus apresenta o problema do sentido da exist�ncia e revela a resposta para o mesmo, encaminhando o homem para Jesus Cristo, o Verbo de Deus encarnado, que realiza em plenitude a exist�ncia humana. Poder-se-iam ainda explicitar outros aspectos da leitura do texto sagrado; de qualquer modo, o que sobressai a rejei��o de toda a forma de relativismo, materialismo, pante�smo.
A convic��o fundamental desta filosofia presente na B�blia que a vida humana e o mundo t�m um sentido e caminham para a sua plenitude, que se verifica em Jesus Cristo. O mist�rio da Encarna��o permanecer� sempre o centro de refer�ncia para se poder compreender o enigma da exist�ncia humana, do mundo criado, e mesmo de Deus. A filosofia encontra, neste mist�rio, os desafios extremos, porque a raz�o chamada a assumir uma l�gica que destr�i as barreiras onde ela mesma corre o risco de se fechar. Somente aqui, por�m, o sentido da exist�ncia alcan�a o seu ponto culminante. Com efeito, torna-se intelig�vel a ess�ncia �ntima de Deus e do homem: no mist�rio do Verbo encarnado, s�o salvaguardadas a natureza divina e a natureza humana, com sua respectiva autonomia, e simultaneamente manifesta-se aquele v�nculo �nico que as coloca em m�tuo relacionamento, sem confus�o. (97)
81. Deve ter-se em conta que um dos dados mais salientes da nossa situa��o actual consiste na crise de sentido �. Os pontos de vista, muitas vezes de car�cter cient�fico, sobre a vida e o mundo multiplicaram-se tanto que estamos efectivamente assistindo afirma��o crescente do fen�meno da fragmenta��o do saber. precisamente isto que torna dif�cil e frequentemente v� a procura de um sentido. E, mais dram�tico ainda, neste emaranhado de dados e de factos, em que se vive e que parece constituir a pr�pria trama da exist�ncia, tantos se interrogam se ainda tem sentido p�r-se a quest�o do sentido. A pluralidade das teorias que se disputam a resposta, ou os diversos modos de ver e interpretar o mundo e a vida do homem n�o fazem sen�o agravar esta d�vida radical, que facilmente desemboca num estado de cepticismo e indiferen�a ou nas diversas express�es do niilismo.
Em consequ�ncia disto, o esp�rito humano fica muitas vezes ocupado por uma forma de pensamento amb�guo, que o leva a encerrar-se ainda mais em si pr�prio, dentro dos limites da pr�pria iman�ncia, sem qualquer refer�ncia ao transcendente. Privada da quest�o do sentido da exist�ncia, uma filosofia incorreria no grave perigo de relegar a raz�o para fun��es meramente instrumentais, sem uma aut�ntica paix�o pela busca da verdade.
Para estar em conson�ncia com a palavra de Deus ocorre, antes de mais, que a filosofia volte a encontrar a sua dimens�o sapiencial de procura do sentido �ltimo e global da vida. Esta primeira exig�ncia, por sinal, constitui um est�mulo util�ssimo para a filosofia se conformar com a sua pr�pria natureza. Deste modo, ela n�o ser� apenas aquela inst�ncia cr�tica decisiva que indica, �s v�rias partes do saber cient�fico, o seu fundamento e os seus limites, mas representar� tamb�m a inst�ncia �ltima de unifica��o do saber e do agir humano, levando-os a convergirem para um fim e um sentido definitivos. Esta dimens�o sapiencial ainda mais indispens�vel hoje, uma vez que o imenso crescimento do poder t�cnico da humanidade requer uma renovada e viva consci�ncia dos valores �ltimos. Se viesse a faltar a estes meios t�cnicos a sua orienta��o para um fim n�o meramente utilitarista, poderiam rapidamente revelar-se desumanos e transformar-se mesmo em potenciais destrutores do g�nero humano. (98)
A palavra de Deus revela o fim �ltimo do homem, e d� um sentido global sua ac��o no mundo. Por isso, ela convida a filosofia a empenhar-se na busca do fundamento natural desse sentido, que a religiosidade constitutiva de cada pessoa. Uma filosofia que quisesse negar a possibilidade de um sentido �ltimo e global, seria n�o apenas impr�pria, mas err�nea.
82. De resto, este papel sapiencial n�o poderia ser desempenhado por uma filosofia que n�o fosse, ela pr�pria, um aut�ntico e verdadeiro saber, isto �, debru�ado n�o s� sobre os aspectos particulares e relativos sejam eles funcionais, formais ou �teis da realidade, mas sobre a verdade total e definitiva desta, ou seja, sobre o pr�prio ser do objecto de conhecimento. Daqui, uma segunda exig�ncia: verificar a capacidade do homem chegar ao conhecimento da verdade; mais, um conhecimento que alcance a verdade objectiva por meio daquela ad�quatio rei et intellectus, a que se referem os Doutores da Escol�stica. (99) Esta exig�ncia, pr�pria da f�, foi explicitamente reafirmada pelo Conc�lio Vaticano II: A intelig�ncia, de facto, n�o se limita ao dom�nio dos fen�menos; embora, em consequ�ncia do pecado, esteja parcialmente obscurecida e debilitada, ela capaz de atingir com certeza a realidade intelig�vel �. (100)
Uma filosofia, radicalmente fenomenista ou relativista, revelar-se-ia inadequada para ajudar no aprofundamento da riqueza contida na palavra de Deus. De facto, a Sagrada Escritura sempre pressup�e que o homem, mesmo quando culp�vel de duplicidade e mentira, capaz de conhecer e captar a verdade clara e simples. Nos Livros Sagrados, e de modo particular no Novo Testamento, encontram-se textos e afirma��es de alcance propriamente ontol�gico. Os autores inspirados, com efeito, quiseram formular afirma��es verdadeiras, isto �, capazes de exprimir a realidade objectiva. N�o se pode dizer que a tradi��o cat�lica tenha cometido um erro, quando entendeu alguns textos de S. Jo�o e de S. Paulo como afirma��es sobre o ser mesmo de Cristo. Ora, quando a teologia procura compreender e explicar estas afirma��es, tem necessidade do aux�lio duma filosofia que n�o renegue a possibilidade de um conhecimento objectivamente verdadeiro, embora sempre pass�vel de aperfei�oamento. Isto vale tamb�m para os ju�zos da consci�ncia moral, que a Sagrada Escritura sup�e ser objectivamente verdadeiros. (101)
83. As duas exig�ncias, j� referidas, implicam uma terceira: ocorre uma filosofia de alcance autenticamente metaf�sico, isto �, capaz de transcender os dados emp�ricos para chegar, na sua busca da verdade, a algo de absoluto, definitivo, b�sico. Trata-se duma exig�ncia impl�cita tanto no conhecimento de tipo sapiencial, como de car�cter anal�tico; de modo particular, uma exig�ncia pr�pria do conhecimento do bem moral, cujo fundamento �ltimo o sumo Bem, o pr�prio Deus. N�o minha inten��o falar aqui da metaf�sica enquanto escola espec�fica ou particular corrente hist�rica; desejo somente afirmar que a realidade e a verdade transcendem o elemento fact�vel e emp�rico, e quero reivindicar a capacidade que o homem possui de conhecer esta dimens�o transcendente e metaf�sica de forma verdadeira e certa, mesmo se imperfeita e anal�gica. Neste sentido, a metaf�sica n�o deve ser vista como alternativa antropologia, pois precisamente ela que permite dar fundamento ao conceito da dignidade da pessoa, assente na sua condi��o espiritual. De modo particular, a pessoa constitui um �mbito privilegiado para o encontro com o ser e, consequentemente, com a reflex�o metaf�sica.
Em toda a parte onde o homem descobre a presen�a dum apelo ao absoluto e ao transcendente, l� se abre uma fresta para a dimens�o metaf�sica do real: na verdade, na beleza, nos valores morais, na pessoa do outro, no ser, em Deus. Um grande desafio, que nos espera no final deste mil�nio, saber realizar a passagem, t�o necess�ria como urgente, do fen�meno ao fundamento. N�o poss�vel deter-se simplesmente na experi�ncia; mesmo quando esta exprime e manifesta a interioridade do homem e a sua espiritualidade, necess�rio que a reflex�o especulativa alcance a subst�ncia espiritual e o fundamento que a sustenta. Portanto, um pensamento filos�fico que rejeitasse qualquer abertura metaf�sica, seria radicalmente inadequado para desempenhar um papel de media��o na compreens�o da Revela��o.
A palavra de Deus alude continuamente a realidades que ultrapassam a experi�ncia e at� mesmo o pensamento do homem; mas, este mist�rio n�o poderia ser revelado, nem a teologia poderia de modo algum torn�-lo intelig�vel, (102) se o conhecimento humano se limitasse exclusivamente ao mundo da experi�ncia sens�vel. Por isso, a metaf�sica constitui uma intermedi�ria privilegiada na pesquisa teol�gica. Uma teologia, privada do horizonte metaf�sico, n�o conseguiria chegar al�m da an�lise da experi�ncia religiosa, n�o permitindo ao intellectus fidei exprimir coerentemente o valor universal e transcendente da verdade revelada.
Se insisto tanto na componente metaf�sica, porque estou convencido de que este o caminho obrigat�rio para superar a situa��o de crise que aflige actualmente grandes sectores da filosofia e, desta forma, corrigir alguns comportamentos errados, difusos na nossa sociedade.
84. A import�ncia da inst�ncia metaf�sica torna-se ainda mais evidente, quando se considera o progresso actual das ci�ncias hermen�uticas e das diferentes an�lises da linguagem. Os resultados alcan�ados por estes estudos podem ser muito �teis para a compreens�o da f�, enquanto manifestam a estrutura do nosso pensar e falar, e o sentido presente na linguagem. Existem, por�m, especialistas destas ci�ncias que tendem, nas suas pesquisas, a deter-se no modo como se compreende e exprime a realidade, prescindindo de verificar a possibilidade de a raz�o descobrir a ess�ncia da mesma. Como n�o individuar neste comportamento uma confirma��o da crise de confian�a, que a nossa �poca est� a atravessar, acerca das capacidades da raz�o? Al�m disso, quando estas teses, baseando-se em convic��es aprior�sticas, tendem a ofuscar os conte�dos da f� ou a negar a sua validade universal, ent�o n�o s� humilham a raz�o, mas colocam-se por si mesmas fora de jogo. De facto, a f� pressup�e claramente que a linguagem humana seja capaz de exprimir de modo universal embora em termos anal�gicos, mas nem por isso menos significativos a realidade divina e transcendente. (103) Se assim n�o fosse, a palavra de Deus, que sempre palavra divina em linguagem humana, n�o seria capaz de exprimir nada sobre Deus. A interpreta��o desta Palavra n�o pode remeter-nos apenas de uma interpreta��o para outra, sem nunca nos fazer chegar a uma afirma��o absolutamente verdadeira; caso contr�rio, n�o haveria revela��o de Deus, mas s� a express�o de no��es humanas sobre Ele e sobre aquilo que presumivelmente Ele pensa de n�s.
85. Bem sei que, aos olhos de muitos dos que actualmente se entregam pesquisa filos�fica, podem parecer �rduas estas exig�ncias postas pela palavra de Deus filosofia. Por isso mesmo, retomando aquilo que, j� h� algumas gera��es, os Sumos Pont�fices n�o cessam de ensinar e que o pr�prio Conc�lio Vaticano II confirmou, quero exprimir vigorosamente a convic��o de que o homem capaz de alcan�ar uma vis�o unit�ria e org�nica do saber. Esta uma das tarefas que o pensamento crist�o dever� assumir durante o pr�ximo mil�nio da era crist�. A subdivis�o do saber, enquanto comporta uma vis�o parcial da verdade com a consequente fragmenta��o do seu sentido, impede a unidade interior do homem de hoje. Como poderia a Igreja deixar de preocupar-se? Os Pastores recebem esta fun��o sapiencial directamente do Evangelho, e n�o podem eximir-se do dever de concretiz�-la.
Considero que todos os que actualmente desejam responder, como fil�sofos, �s exig�ncias que a palavra de Deus p�e ao pensamento humano, deveriam elaborar o seu racioc�nio sobre a base destes postulados, numa coerente continuidade com aquela grande tradi��o que, partindo dos antigos, passa pelos Padres da Igreja e os mestres da escol�stica at� chegar a englobar as conquistas fundamentais do pensamento moderno e contempor�neo. Se conseguir recorrer a esta tradi��o e inspirar-se nela, o fil�sofo n�o deixar� de se mostrar fiel exig�ncia de autonomia do pensamento filos�fico.
Neste sentido, muito importante que, no contexto actual, alguns fil�sofos se fa�am promotores da descoberta do papel determinante que tem a tradi��o para uma forma correcta de conhecimento. De facto, o recurso tradi��o n�o uma mera lembran�a do passado; mas constitui sobretudo o reconhecimento dum patrim�nio cultural que pertence a toda a humanidade. Poder-se-ia mesmo dizer que somos n�s que pertencemos tradi��o, e por isso n�o podemos dispor dela a nosso bel-prazer. precisamente este enraizamento na tradi��o que hoje nos permite poder exprimir um pensamento original, novo e aberto para o futuro. Esta observa��o ainda mais pertinente para a teologia, n�o s� porque ela possui a Tradi��o viva da Igreja como fonte origin�ria, (104) mas tamb�m porque ela, em virtude disso mesmo, deve ser capaz de recuperar quer a profunda tradi��o teol�gica que marcou as �pocas precedentes, quer a tradi��o perene daquela filosofia que, pela sua real sabedoria, conseguiu superar as fronteiras do espa�o e do tempo.
86. A insist�ncia sobre a necessidade duma estreita rela��o de continuidade entre a reflex�o filos�fica actual e a reflex�o elaborada na tradi��o crist� visa prevenir do perigo que se esconde em algumas correntes de pensamento, hoje particularmente difusas. Embora brevemente, considero oportuno deter-me sobre elas, para p�r em relevo os seus erros e consequentes riscos para a actividade filos�fica.
A primeira aparece sob o nome de ecletismo, termo com o qual se designa o comportamento de quem, na pesquisa, na doutrina e na argumenta��o, mesmo teol�gica, costuma assumir ideias tomadas isoladamente de distintas filosofias, sem se preocupar com a sua coer�ncia e conex�o sistem�tica, nem com o seu contexto hist�rico. Deste modo, a pessoa fica impossibilitada de discernir entre a parte de verdade dum pensamento e aquilo que nele pode ser errado ou inadequado. Tamb�m poss�vel individuar uma forma extrema de ecletismo no abuso ret�rico dos termos filos�ficos, �s vezes praticado por alguns te�logos. Este g�nero de instrumentaliza��o n�o favorece a busca da verdade, nem educa a raz�o tanto teol�gica, como filos�fica a argumentar de forma s�ria e cient�fica. O estudo rigoroso e profundo das doutrinas filos�ficas, da linguagem que lhes peculiar, e do contexto onde surgiram, ajuda a superar os riscos do ecletismo e permite uma adequada integra��o daquelas na argumenta��o teol�gica.
87. O ecletismo um erro de m�todo, mas poderia tamb�m ocultar em si as teses pr�prias do historicismo. Para compreender correctamente uma doutrina do passado, necess�rio que esteja inserida no seu contexto hist�rico e cultural. Diversamente, o historicismo toma como sua tese fundamental estabelecer a verdade duma filosofia com base na sua adequa��o a um determinado per�odo e fun��o hist�rica. Deste modo nega-se, pelo menos implicitamente, a validade perene da verdade. O que era verdade numa �poca, afirma o historicista, pode j� n�o s�-lo noutra. Em resumo, a hist�ria do pensamento, para ele, reduz-se a uma esp�cie de achado arqueol�gico, a que recorre a fim de p�r em evid�ncia posi��es do passado, em grande parte j� superadas e sem significado para o tempo presente. Ora, apesar de a formula��o estar de certo modo ligada ao tempo e cultura, deve-se considerar que a verdade ou o erro nela expressos podem ser, n�o obstante a dist�ncia esp�cio-temporal, reconhecidos e avaliados como tais.
Na reflex�o teol�gica, o historicismo tende a maior parte das vezes a apresentar-se sob uma forma de modernismo �. Com a justa preocupa��o de tornar o discurso teol�gico actual e assimil�vel para o homem contempor�neo, faz-se apenas uso das asser��es e termos filos�ficos mais recentes, descuidando exig�ncias cr�ticas que, luz da tradi��o, dever-se-iam eventualmente colocar. Esta forma de modernismo, pelo simples facto de trocar a actualidade pela verdade, revela-se incapaz de satisfazer as exig�ncias de verdade a que a teologia chamada a dar resposta.
88. Outro perigo a ser considerado o cientificismo. Esta concep��o filos�fica recusa-se a admitir, como v�lidas, formas de conhecimento distintas daquelas que s�o pr�prias das ci�ncias positivas, relegando para o �mbito da pura imagina��o tanto o conhecimento religioso e teol�gico, como o saber �tico e est�tico. No passado, a mesma ideia aparecia expressa no positivismo e no neopositivismo, que consideravam destitu�das de sentido as afirma��es de car�cter metaf�sico. A cr�tica epistemol�gica desacreditou esta posi��o; mas, vemo-las agora renascer sob as novas vestes do cientificismo. Na sua perspectiva, os valores s�o reduzidos a simples produtos da emotividade, e a no��o de ser posta de lado para dar lugar ao facto puro e simples. A ci�ncia, prepara-se assim para dominar todos os aspectos da exist�ncia humana, atrav�s do progresso tecnol�gico. Os sucessos ineg�veis no �mbito da pesquisa cient�fica e da tecnologia contempor�nea contribu�ram para a difus�o da mentalidade cientificista, que parece n�o conhecer fronteiras, quando vemos como penetrou nas diversas culturas e as mudan�as radicais que a� provocou.
Infelizmente, deve-se constatar que o cientificismo considera tudo o que se refere quest�o do sentido da vida como fazendo parte do dom�nio do irracional ou da fantasia. Ainda mais decepcionante a perspectiva apresentada por esta corrente de pensamento a respeito dos outros grandes problemas da filosofia que, quando n�o passam simplesmente ignorados, s�o analisados com base em analogias superficiais, destitu�das de fundamenta��o racional. Isto leva ao empobrecimento da reflex�o humana, subtraindo-lhe aqueles problemas fundamentais que o animal rationale se tem colocado constantemente, desde o in�cio da sua exist�ncia sobre a terra. Na mesma linha, ao p�r de lado a cr�tica que nasce da avalia��o �tica, a mentalidade cientificista conseguiu fazer com que muitos aceitassem a ideia de que aquilo que se pode realizar tecnicamente, torna-se por isso mesmo tamb�m moralmente admiss�vel.
89. Portador de perigos n�o menores o pragmatismo, atitude mental pr�pria de quem, ao fazer as suas op��es, exclui o recurso a reflex�es abstractas ou a avalia��es fundadas sobre princ�pios �ticos. As consequ�ncias pr�ticas, que derivam desta linha de pensamento, s�o not�veis. De modo particular, tem vindo a ganhar terreno uma concep��o da democracia que n�o contempla o referimento a fundamentos de ordem axiol�gica e, por isso mesmo, imut�veis: a admissibilidade, ou n�o, de determinado comportamento decidida com base no voto da maioria parlamentar. (105) A consequ�ncia de semelhante posi��o clara: as grandes decis�es morais do homem ficam efectivamente subordinadas �s delibera��es que os �rg�os institucionais v�o assumindo pouco a pouco. Mais, a pr�pria antropologia fica fortemente condicionada com a proposta duma vis�o unidimensional do ser humano, da qual se excluem os grandes dilemas �ticos e as an�lises existenciais sobre o sentido do sofrimento e do sacrif�cio, da vida e da morte.
90. As teses examinadas at� aqui conduzem, por sua vez, a uma concep��o mais geral, que parece constituir, hoje, o horizonte comum de muitas filosofias que n�o querem saber do sentido do ser. Estou a referir-me leitura niilista, que a rejei��o de qualquer fundamento e simultaneamente a nega��o de toda a verdade objectiva. O niilismo, antes mesmo de estar em contraste com as exig�ncias e os conte�dos pr�prios da palavra de Deus, nega��o da humanidade do homem e tamb�m da sua identidade. De facto, preciso ter em conta que o olvido do ser implica inevitavelmente a perda de contacto com a verdade objectiva e, consequentemente, com o fundamento sobre o qual se apoia a dignidade do homem. Deste modo, abre-se espa�o possibilidade de apagar, da face do homem, os tra�os que revelam a sua semelhan�a com Deus, conduzindo-o progressivamente a uma destrutiva ambi��o de poder ou ao desespero da solid�o. Uma vez que se privou o homem da verdade, pura ilus�o pretender torn�-lo livre. Verdade e liberdade, com efeito, ou caminham juntas, ou juntas miseravelmente perecem. (106)
91. Ao comentar as correntes de pensamento acima lembradas, n�o foi minha inten��o apresentar um quadro completo da situa��o actual da filosofia: ali�s, esta dificilmente poderia ser integrada numa vis�o unit�ria. Fa�o quest�o de assinalar que a heran�a do saber e da sabedoria se enriqueceu efectivamente em diversos campos. Basta citar a l�gica, a filosofia da linguagem, a epistemologia, a filosofia da natureza, a antropologia, a an�lise profunda das vias afectivas do conhecimento, a perspectiva existencial aplicada an�lise da liberdade. Por outro lado, a afirma��o do princ�pio de iman�ncia, que est� no �mago da pretens�o racionalista, suscitou, a partir do s�culo passado, reac��es que levaram a p�r radicalmente em quest�o postulados considerados indiscut�veis. Nasceram assim correntes irracionalistas, ao mesmo tempo que a cr�tica punha em evid�ncia a inutilidade da exig�ncia de auto-fundamenta��o absoluta da raz�o.
A nossa �poca foi definida por certos pensadores como a �poca da p�s-modernidade �. Este termo, n�o raramente usado em contextos muito distanciados entre si, designa a apari��o de um conjunto de factores novos, que, pela sua extens�o e efic�cia, se revelaram capazes de determinar mudan�as significativas e duradouras. Assim, o termo foi primeiramente usado no campo de fen�menos de ordem est�tica, social, tecnol�gica. Depois, estendeu-se ao �mbito filos�fico, permanecendo, por�m, marcado por certa ambiguidade, quer porque a avalia��o do que se define como p�s-moderno � umas vezes positivo e outras negativo, quer porque n�o existe consenso sobre o delicado problema da delimita��o das v�rias �pocas hist�ricas. Uma coisa, todavia, certa: as correntes de pensamento que fazem refer�ncia p�s-modernidade merecem adequada aten��o. Segundo algumas delas, de facto, o tempo das certezas teria irremediavelmente passado, o homem deveria finalmente aprender a viver num horizonte de aus�ncia total de sentido, sob o signo do provis�rio e do ef�mero. Muitos autores, na sua cr�tica demolidora de toda a certeza e ignorando as devidas distin��es, contestam inclusivamente as certezas da f�.
De algum modo, este niilismo encontra confirma��o na terr�vel experi�ncia do mal que caracterizou a nossa �poca. O optimismo racionalista que via na hist�ria o avan�o vitorioso da raz�o, fonte de felicidade e de liberdade, n�o p�de resistir face dramaticidade de tal experi�ncia, a ponto de uma das maiores amea�as, neste final de s�culo, ser a tenta��o do desespero.
Verdade que uma certa mentalidade positivista continua a defender a ilus�o de que, gra�as �s conquistas cient�ficas e t�cnicas, o homem, como se fosse um demiurgo, poder� chegar por si mesmo a garantir o dom�nio total do seu destino.
2. Tarefas actuais da teologia92. Enquanto compreens�o da Revela��o, a teologia, nas sucessivas �pocas hist�ricas, sempre sentiu como pr�prio dever escutar as solicita��es das v�rias culturas, para perme�-las depois, atrav�s duma coerente conceptualiza��o, com o conte�do da f�. Tamb�m hoje lhe compete uma dupla tarefa. Por um lado, deve cumprir a miss�o que o Conc�lio Vaticano II lhe confiou: renovar as suas metodologias, tendo em vista um servi�o mais eficaz evangeliza��o. Nesta perspectiva, como n�o pensar �s palavras pronunciadas pelo Sumo Pont�fice Jo�o XXIII, na abertura do Conc�lio? Dizia ele: Correspondendo viva expectativa de quantos amam sinceramente a religi�o crist�, cat�lica e apost�lica, necess�rio que esta doutrina seja conhecida mais ampla e profundamente e que nela sejam instru�das e formadas mais plenamente as consci�ncias; preciso que esta doutrina certa e imut�vel, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e apresentada segundo as exig�ncias do nosso tempo �. (107)
Mas, por outro lado, a teologia deve manter o olhar fixo sobre a verdade �ltima que lhe foi confiada por meio da Revela��o, n�o se contentando nem se detendo em etapas interm�dias. O te�logo recorde-se de que o seu trabalho corresponde ao dinamismo interior pr�prio da f� e que o objecto espec�fico da sua indaga��o � a Verdade, o Deus vivo e o seu des�gnio de salva��o revelado em Jesus Cristo �. (108) Esta tarefa, que diz respeito em primeiro lugar teologia, interpela tamb�m a filosofia. De facto, a quantidade imensa de problemas, que hoje aparece, requer um trabalho comum, embora desenvolvido com metodologias diversas, para que a verdade possa novamente ser conhecida e anunciada. A Verdade, que Cristo, imp�e-se como autoridade universal que rege, estimula e faz crescer (cf. Ef 4, 15) tanto a teologia como a filosofia.
O facto de acreditar na possibilidade de se conhecer uma verdade universalmente v�lida n�o de forma alguma fonte de intoler�ncia; pelo contr�rio, condi��o necess�ria para um di�logo sincero e aut�ntico entre as pessoas. S� com esta condi��o ser� poss�vel superar as divis�es e percorrer juntos o caminho que conduz verdade total, seguindo por sendas que s� Esp�rito do Senhor ressuscitado conhece. (109) O modo como se configura hoje concretamente a exig�ncia de unidade, tendo em vista as tarefas actuais da teologia, o que desejo agora indicar.
93. O objectivo fundamental, que a teologia persegue, apresentar a compreens�o da Revela��o e o conte�do da f�. Assim, o verdadeiro centro da sua reflex�o h�-de ser a contempla��o do pr�prio mist�rio de Deus Uno e Trino. E a este chega-se reflectindo sobre o mist�rio da encarna��o do Filho de Deus: sobre o facto de Ele Se fazer homem e, depois, caminhar at� paix�o e morte, mist�rio este que desembocar� na sua gloriosa ressurrei��o e ascens�o direita do Pai, donde enviar� o Esp�rito de verdade para constituir e animar a sua Igreja. Neste horizonte, a obriga��o primeira da teologia a compreens�o da kenosi de Deus, mist�rio verdadeiramente grande para a mente humana, porque lhe parece insustent�vel que o sofrimento e a morte possam exprimir o amor que se d� sem pedir nada em troca. Nesta perspectiva, imp�e-se como exig�ncia fundamental e urgente uma an�lise atenta dos textos: os textos b�blicos primeiro, e depois os que exprimem a Tradi��o viva da Igreja. A este respeito, surgem hoje alguns problemas, novos s� em parte, cuja solu��o coerente n�o poder� ser encontrada sem o contributo da filosofia.
94. Um primeiro aspecto problem�tico refere-se rela��o entre o significado e a verdade. Como qualquer outro texto, tamb�m as fontes que o te�logo interpreta transmitem, antes de mais, um significado, que tem de ser individuado e exposto. Ora, este significado apresenta-se como a verdade acerca de Deus, que comunicada pelo pr�prio Deus por meio do texto sagrado. Assim, a linguagem de Deus toma corpo na linguagem humana, comunicando a verdade sobre Ele mesmo com aquela condescend�ncia admir�vel que reflecte a l�gica da Encarna��o. (110) Por isso, ao interpretar as fontes da Revela��o, necess�rio que o te�logo se interrogue sobre qual seja a verdade profunda e genu�na que os textos querem comunicar, embora dentro dos limites da linguagem.
Quanto aos textos b�blicos, e em particular os Evangelhos, a sua verdade n�o se reduz seguramente narra��o de simples acontecimentos hist�ricos ou revela��o de factos neutros, como pretendia o positivismo historicista. (111) Pelo contr�rio, esses textos exp�em acontecimentos, cuja verdade est� para al�m da mera ocorr�ncia hist�rica: est� no seu significado para e dentro da hist�ria da salva��o. Esta verdade adquire a sua plena explicita��o na leitura perene que a Igreja faz dos referidos textos ao longo dos s�culos, mantendo inalterado o seu significado origin�rio. Portanto, urgente que se interroguem, filosoficamente tamb�m, sobre a rela��o que h� entre o facto e o seu significado; rela��o essa que constitui o sentido espec�fico da hist�ria.
95. A palavra de Deus n�o se destina apenas a um povo ou s� a uma �poca. De igual modo, tamb�m os enunciados dogm�ticos formulam uma verdade permanente e definitiva, ainda que �s vezes se possa notar neles a cultura do per�odo em que foram definidos. Surge, assim, a pergunta sobre como seja poss�vel conciliar o car�cter absoluto e universal da verdade com o inevit�vel condicionamento hist�rico e cultural das f�rmulas que a exprimem. Como disse anteriormente, as teses do historicismo n�o s�o defend�veis. Pelo contr�rio, a aplica��o duma hermen�utica aberta quest�o metaf�sica capaz de mostrar como se passa das circunst�ncias hist�ricas e contingentes, onde maturaram os textos, verdade por eles expressa que est� para al�m desses condicionalismos.
Com a sua linguagem hist�rica e limitada, o homem pode exprimir verdades que transcendem o fen�meno lingu�stico. De facto, a verdade nunca pode estar limitada a um tempo, nem a uma cultura; conhecida na hist�ria, mas supera a pr�pria hist�ria.
96. Esta considera��o permite vislumbrar a solu��o de outro problema: o da perene validade dos conceitos usados nas defini��es conciliares. J� o meu venerado Predecessor Pio XII enfrentara a quest�o, na carta enc�clica Humani generis. (112)
A reflex�o sobre este assunto n�o f�cil, porque tem-se de atender cuidadosamente ao sentido que as palavras adquirem nas diversas culturas e nas diferentes �pocas. Entretanto, a hist�ria do pensamento mostra que certos conceitos b�sicos mant�m, atrav�s da evolu��o e da variedade das culturas, o seu valor cognoscitivo universal e, consequentemente, a verdade das proposi��es que os exprimem. (113) Se assim n�o fosse, a filosofia e as ci�ncias n�o poderiam comunicar entre si, nem ser recebidas por culturas diferentes daquelas onde foram pensadas e elaboradas. O problema hermen�utico real, mas tem solu��o. O valor objectivo de muitos conceitos n�o exclui, ali�s, que o seu significado frequentemente seja imperfeito. A reflex�o filos�fica poderia ser de grande ajuda neste campo. Possa ela prestar o seu contributo particular no aprofundamento da rela��o entre linguagem conceptual e verdade, e na proposta de caminhos adequados para uma sua correcta compreens�o.
97. Se uma tarefa importante da teologia a interpreta��o das fontes, mais delicado e exigente ainda o trabalho seguinte: a compreens�o da verdade revelada, ou seja, a elabora��o do intellectus fidei. Como j� aludi, o intellectus fidei requer o contributo duma filosofia do ser que, antes de mais, permita teologia dogm�tica realizar adequadamente as suas fun��es. O pragmatismo dogm�tico dos in�cios deste s�culo, segundo o qual as verdades da f� nada mais seriam do que regras de comportamento, foi j� refutado e rejeitado; (114) apesar disso, persiste sempre a tenta��o de compreender estas verdades de forma puramente funcional. Neste caso, cair-se-ia num esquema inadequado, redutivo e desprovido da necess�ria incisividade especulativa. Por exemplo, uma cristologia que partisse unilateralmente de baixo �, como hoje se costuma dizer, ou uma eclesiologia elaborada unicamente a partir do modelo das sociedades civis dificilmente poderiam evitar o perigo de tal reducionismo.
Se o intellectus fidei quer integrar toda a riqueza da tradi��o teol�gica, tem de recorrer filosofia do ser. Esta dever� ser capaz de propor o problema do ser segundo as exig�ncias e as contribui��es de toda a tradi��o filos�fica, incluindo a mais recente, evitando cair em est�reis repeti��es de esquemas antiquados. No quadro da tradi��o metaf�sica crist�, a filosofia do ser uma filosofia din�mica que v� a realidade nas suas estruturas ontol�gicas, causais e inter-relacionais. A sua for�a e perenidade derivam do facto de se basear precisamente sobre o acto do ser, o que lhe permite uma abertura plena e global a toda a realidade, superando todo e qualquer limite at� alcan�ar Aquele que tudo leva perfei��o. (115) Na teologia, que recebe os seus princ�pios da Revela��o como nova fonte de conhecimento, esta perspectiva confirmada atrav�s da rela��o �ntima entre f� e racionalidade metaf�sica.
98. Id�nticas considera��es podem ser feitas a prop�sito da teologia moral. A recupera��o da filosofia urgente tamb�m para a compreens�o da f� que diz respeito ao agir dos crentes. Diante dos desafios que se levantam actualmente no campo social, econ�mico, pol�tico e cient�fico, a consci�ncia �tica do homem desorientou-se. Na carta enc�clica Veritatis splendor, pus em evid�ncia que muitos problemas do mundo contempor�neo derivam de uma crise em torno da verdade. Perdida a ideia duma verdade universal sobre o bem, cognosc�vel pela raz�o humana, mudou tamb�m inevitavelmente a concep��o de consci�ncia: esta deixa de ser considerada na sua realidade original, ou seja, como um acto da intelig�ncia da pessoa, a quem cabe aplicar o conhecimento universal do bem a uma determinada situa��o e exprimir assim um ju�zo sobre a conduta justa a ter aqui e agora; tende-se a conceder consci�ncia do indiv�duo o privil�gio de estabelecer autonomamente os crit�rios do bem e do mal, e de agir em consequ�ncia. Esta vis�o identifica-se com uma �tica individualista, na qual cada um se v� confrontado com a sua verdade, diferente da verdade dos outros �. (116)
Ao longo de toda a enc�clica agora citada, sublinhei claramente o papel fundamental que compete verdade no campo da moral. Ora esta verdade, na maior parte dos problemas �ticos mais urgentes, requer, da teologia moral, uma cuidadosa reflex�o que saiba p�r em evid�ncia as suas ra�zes na palavra de Deus. Para poder desempenhar esta sua miss�o, a teologia moral deve recorrer a uma �tica filos�fica que tenha em vista a verdade do bem, isto �, uma �tica que n�o seja subjectivista nem utilitarista. Tal �tica implica e pressup�e uma antropologia filos�fica e uma metaf�sica do bem. A teologia moral, valendo-se desta vis�o unit�ria que est� necessariamente ligada santidade crist� e pr�tica das virtudes humanas e sobrenaturais, ser� capaz de enfrentar os v�rios problemas que lhe dizem respeito tais como a paz, a justi�a social, a fam�lia, a defesa da vida e do ambiente natural de forma mais adequada e eficaz.
99. Na Igreja, o trabalho teol�gico est�, primariamente, ao servi�o do an�ncio da f� e da catequese. (117) O an�ncio, ou querigma, chama convers�o, propondo a verdade de Cristo que tem o seu ponto culminante no Mist�rio Pascal: na verdade, s� em Cristo poss�vel conhecer a plenitude da verdade que salva (cf. Act 4, 12; 1 Tim 2, 4-6).
Neste contexto, f�cil compreender a raz�o por que, al�m da teologia, assuma tamb�m grande relevo a refer�ncia catequese: que esta possui implica��es filos�ficas que t�m de ser aprofundadas luz da f�. A doutrina ensinada na catequese pretende formar a pessoa. Por isso a catequese, que tamb�m comunica��o lingu�stica, deve apresentar a doutrina da Igreja na sua integridade, (118) mostrando a liga��o que ela tem com a vida dos crentes. (119) Realiza-se, assim, uma singular uni�o entre doutrina e vida, que imposs�vel conseguir de outro modo. De facto, aquilo que se comunica na catequese n�o um corpo de verdades conceptuais, mas o mist�rio do Deus vivo. (120)
A reflex�o filos�fica muito pode contribuir para esclarecer a rela��o entre verdade e vida, entre acontecimento e verdade doutrinal, e sobretudo a rela��o entre verdade transcendente e linguagem humanamente intelig�vel. (121) A reciprocidade que se cria entre as disciplinas teol�gicas e os resultados alcan�ados pelas diversas correntes filos�ficas, pode traduzir-se numa real fecundidade para a comunica��o da f� e para uma sua compreens�o mais profunda.
CONCLUS�O100. Passados mais de cem anos da publica��o da enc�clica �terni Patris de Le�o XIII, qual me referi v�rias vezes nestas p�ginas, pareceu-me necess�rio abordar novamente e de forma mais sistem�tica o discurso sobre o tema da rela��o entre a f� e a filosofia. �bvia a import�ncia que o pensamento filos�fico tem no progresso das culturas e na orienta��o dos comportamentos pessoais e sociais. Embora isso nem sempre se note de forma expl�cita, ele exerce tamb�m uma grande influ�ncia sobre a teologia e suas diversas disciplinas. Por estes motivos, considerei justo e necess�rio sublinhar o valor que a filosofia tem para a compreens�o da f�, e as limita��es em que aquela se v�, quando esquece ou rejeita as verdades da Revela��o. De facto, a Igreja continua profundamente convencida de que f� e raz�o se ajudam mutuamente �, (122) exercendo, uma em prol da outra, a fun��o tanto de discernimento cr�tico e purificador, como de est�mulo para progredir na investiga��o e no aprofundamento.
101. Se detivermos o nosso olhar sobre a hist�ria do pensamento, sobretudo no Ocidente, f�cil constatar a riqueza que sobreveio, para o progresso da humanidade, do encontro da filosofia com a teologia e do interc�mbio das suas respectivas conquistas. A teologia, que recebeu o dom duma abertura e originalidade que lhe permite existir como ci�ncia da f�, fez seguramente com que a raz�o permanecesse aberta diante da novidade radical que a revela��o de Deus traz consigo. E isto foi, sem d�vida alguma, uma vantagem para a filosofia, que, assim, viu abrirem-se novos horizontes apontando para sucessivos significados que a raz�o est� chamada a aprofundar.
Precisamente luz desta constata��o, tal como reafirmei o dever que tem a teologia de recuperar a sua genu�na rela��o com a filosofia, da mesma forma sinto a obriga��o de sublinhar que conveniente para o bem e o progresso do pensamento que tamb�m a filosofia recupere a sua rela��o com a teologia. Nesta, encontrar� n�o a reflex�o dum mero indiv�duo, que, embora profunda e rica, sempre traz consigo as limita��es de perspectiva pr�prias do pensamento de um s�, mas a riqueza duma reflex�o comum. De facto, quando indaga sobre a verdade, a teologia, por sua natureza, sustentada pela nota da eclesialidade (123) e pela tradi��o do Povo de Deus, com sua riqueza multiforme de conhecimentos e de culturas na unidade da f�.
102. Com tal insist�ncia sobre a import�ncia e as aut�nticas dimens�es do pensamento filos�fico, a Igreja promove a defesa da dignidade humana e, simultaneamente, o an�ncio da mensagem evang�lica. Ora, para estas tarefas, n�o existe, hoje, prepara��o mais urgente do que esta: levar os homens descoberta da sua capacidade de conhecer a verdade (124) e do seu anseio pelo sentido �ltimo e definitivo da exist�ncia. luz destas exig�ncias profundas, inscritas por Deus na natureza humana, aparece mais claro tamb�m o significado humano e humanizante da palavra de Deus. Gra�as media��o de uma filosofia que se tornou tamb�m verdadeira sabedoria, o homem contempor�neo chegar� a reconhecer que ser� tanto mais homem quanto mais se abrir a Cristo, acreditando no Evangelho.
103. Al�m disso, a filosofia como que o espelho onde se reflecte a cultura dos povos. Uma filosofia que se desenvolve de harmonia com a f� aceitando o est�mulo das exig�ncias teol�gicas, faz parte daquela evangeliza��o da cultura que Paulo VI prop�s como um dos objectivos fundamentais da evangeliza��o. (125) Pensando na nova evangeliza��o, cuja urg�ncia n�o me canso de recordar, fa�o apelo aos fil�sofos para que saibam aprofundar aquelas dimens�es de verdade, bem e beleza, a que d� acesso a palavra de Deus. Isto torna-se ainda mais urgente, ao considerar os desafios que o novo mil�nio parece trazer consigo: eles tocam de modo particular as regi�es e as culturas de antiga tradi��o crist�. Este cuidado deve considerar-se tamb�m um contributo fundamental e original para o avan�o da nova evangeliza��o.
104. O pensamento filos�fico frequentemente o �nico terreno comum de entendimento e di�logo com quem n�o partilha a nossa f�. O movimento filos�fico contempor�neo exige o empenhamento sol�cito e competente de fil�sofos crentes que sejam capazes de individuar as expectativas, possibilidades e problem�ticas deste momento hist�rico. Discorrendo luz da raz�o e segundo as suas regras, o fil�sofo crist�o, sempre guiado naturalmente pela leitura superior que lhe vem da palavra de Deus, pode criar uma reflex�o que seja compreens�vel e sensata mesmo para quem ainda n�o possua a verdade plena que a revela��o divina manifesta. Este terreno comum de entendimento e di�logo ainda mais importante hoje, se se pensa que os problemas mais urgentes da humanidade como, por exemplo, o problema ecol�gico, o problema da paz ou da conviv�ncia das ra�as e das culturas podem ter solu��o luz duma colabora��o clara e honesta dos crist�os com os fi�is doutras religi�es e com todos os que, mesmo n�o aderindo a qualquer cren�a religiosa, t�m a peito a renova��o da humanidade. Afirmou-o o Conc�lio Vaticano II: Por nossa parte, o desejo de um tal di�logo, guiado apenas pelo amor pela verdade e com a necess�ria prud�ncia, n�o exclui ningu�m: nem aqueles que cultivam os altos valores do esp�rito humano, sem ainda conhecerem o seu Autor, nem aqueles que se op�em Igreja e, de v�rias maneiras, a perseguem �. (126) Uma filosofia, na qual j� resplande�a algo da verdade de Cristo, �nica resposta definitiva aos problemas do homem, (127) ser� um apoio eficaz para aquela �tica verdadeira e simultaneamente universal de que, hoje, a humanidade tem necessidade.
105. N�o posso concluir esta carta enc�clica sem dirigir um �ltimo apelo, em primeiro lugar aos te�logos, para que prestem particular aten��o �s implica��es filos�ficas da palavra de Deus e realizem uma reflex�o onde sobressaia a densidade especulativa e pr�tica da ci�ncia teol�gica. Desejo agradecer-lhes o seu servi�o eclesial. A estrita conex�o entre a sabedoria teol�gica e o saber filos�fico uma das riquezas mais originais da tradi��o crist� no aprofundamento da verdade revelada. Por isso, exorto-os a recuperarem e a porem em evid�ncia o melhor poss�vel a dimens�o metaf�sica da verdade, para desse modo entrarem num di�logo cr�tico e exigente quer com o pensamento filos�fico contempor�neo, quer com toda a tradi��o filos�fica, esteja esta em sintonia ou contradi��o com a palavra de Deus. Tenham sempre presente a indica��o dum grande mestre do pensamento e da espiritualidade, S. Boaventura, que, ao introduzir o leitor na sua obra Itinerarium mentis in Deum, convidava-o a ter consci�ncia de que a leitura n�o suficiente sem a compun��o, o conhecimento sem a devo��o, a investiga��o sem o arrebatamento do enlevo, a prud�ncia sem a capacidade de abandonar-se alegria, a actividade separada da religiosidade, o saber separado da caridade, a intelig�ncia sem a humildade, o estudo sem o suporte da gra�a divina, a reflex�o sem a sabedoria inspirada por Deus �. (128)
Dirijo o meu apelo tamb�m a quantos t�m a responsabilidade da forma��o sacerdotal, tanto acad�mica como pastoral, para que cuidem, com particular aten��o, da prepara��o filos�fica daquele que dever� anunciar o Evangelho ao homem de hoje, e mais ainda se se vai dedicar investiga��o e ao ensino da teologia. Procurem organizar o seu trabalho luz das prescri��es do Conc�lio Vaticano II (129) e sucessivas determina��es, que mostram a tarefa indeclin�vel e urgente, que cabe a todos n�s, de contribuir para uma genu�na e profunda comunica��o das verdades da f�. N�o se esque�a a grave responsabilidade de uma prepara��o pr�via e condigna do corpo docente, destinado ao ensino da filosofia nos Semin�rios e nas Faculdades Eclesi�sticas. (130) necess�rio que uma tal doc�ncia possua a conveniente prepara��o cient�fica, proponha de maneira sistem�tica o grande patrim�nio da tradi��o crist�, e seja efectuada com o devido discernimento face �s exig�ncias actuais da Igreja e do mundo.
106. O meu apelo dirige-se ainda aos fil�sofos e a quantos ensinam a filosofia, para que, na esteira duma tradi��o filos�fica perenemente v�lida, tenham a coragem de recuperar as dimens�es de aut�ntica sabedoria e de verdade, inclusive metaf�sica, do pensamento filos�fico. Deixem-se interpelar pelas exig�ncias que nascem da palavra de Deus, e tenham a for�a de elaborar o seu discurso racional e argumentativo de resposta a tal interpela��o. Vivam em permanente tens�o para a verdade e atentos ao bem que existe em tudo o que verdadeiro. Poder�o, assim, formular aquela �tica genu�na de que a humanidade tem urgente necessidade, sobretudo nestes anos. A Igreja acompanha com aten��o e simpatia as suas investiga��es; podem, pois, estar seguros do respeito que ela nutre pela justa autonomia da sua ci�ncia. De modo particular, quero encorajar os crentes empenhados no campo da filosofia para que iluminem os diversos �mbitos da actividade humana, gra�as ao exerc�cio de uma raz�o que se torna mais segura e perspicaz com o apoio que recebe da f�.
N�o posso, enfim, deixar de dirigir uma palavra tamb�m aos cientistas, que nos proporcionam, com as suas pesquisas, um conhecimento sempre maior do universo inteiro e da variedade extraordinariamente rica dos seus componentes, animados e inanimados, com suas complexas estruturas de �tomos e mol�culas. O caminho por eles realizado atingiu, especialmente neste s�culo, metas que n�o cessam de nos maravilhar. Ao exprimir a minha admira��o e o meu encorajamento a estes valorosos pioneiros da pesquisa cient�fica, a quem a humanidade muito deve do seu progresso actual, sinto o dever de exort�-los a prosseguir nos seus esfor�os, permanecendo sempre naquele horizonte sapiencial onde aos resultados cient�ficos e tecnol�gicos se unem os valores filos�ficos e �ticos, que s�o manifesta��o caracter�stica e imprescind�vel da pessoa humana. O cientista est� bem c�nscio de que a busca da verdade, mesmo quando se refere a uma realidade limitada do mundo ou do homem, jamais termina; remete sempre para alguma coisa que est� acima do objecto imediato dos estudos, para os interrogativos que abrem o acesso ao Mist�rio �. (131)
107. A todos pe�o para se debru�arem profundamente sobre o homem, que Cristo salvou no mist�rio do seu amor, e sobre a sua busca constante de verdade e de sentido. Iludindo-o, v�rios sistemas filos�ficos convenceram-no de que ele senhor absoluto de si mesmo, que pode decidir autonomamente sobre o seu destino e o seu futuro, confiando apenas em si pr�prio e nas suas for�as. Ora, esta nunca poder� ser a grandeza do homem. Para a sua realiza��o, ser� determinante apenas a op��o de viver na verdade, construindo a pr�pria casa sombra da Sabedoria e nela habitando. S� neste horizonte da verdade poder� compreender, com toda a clareza, a sua liberdade e o seu chamamento ao amor e ao conhecimento de Deus como suprema realiza��o de si mesmo.
108. Por �ltimo, o meu pensamento dirige-se para Aquela que a ora��o da Igreja invoca como Sede da Sabedoria. A sua vida uma verdadeira par�bola, capaz de iluminar a reflex�o que desenvolvi. De facto, pode-se entrever uma profunda analogia entre a voca��o da bem-aventurada Virgem Maria e a voca��o da filosofia genu�na. Como a Virgem foi chamada a oferecer toda a sua humanidade e feminilidade para que o Verbo de Deus pudesse encarnar e fazer-Se um de n�s, tamb�m a filosofia chamada a dar o seu contributo racional e cr�tico para que a teologia, enquanto compreens�o da f�, seja fecunda e eficaz. E como Maria, ao prestar o seu consentimento ao an�ncio de Gabriel, nada perdeu da sua verdadeira humanidade e liberdade, assim tamb�m o pensamento filos�fico, quando acolhe a interpela��o que recebe da verdade do Evangelho, nada perde da sua autonomia, antes v� toda a sua indaga��o elevada mais alta realiza��o. Os santos monges da antiguidade crist� tinham compreendido bem esta verdade, quando designavam Maria como a mesa intelectual da f� �. (132) N'Ela, viam a imagem coerente da verdadeira filosofia, e estavam convencidos de que deviam philosophari in Maria.
Que a Sede da Sabedoria seja o porto seguro para quantos consagram a sua vida procura da sabedoria! O caminho para a sabedoria, fim �ltimo e aut�ntico de todo o verdadeiro saber, possa ver-se livre de qualquer obst�culo por intercess�o d'Aquela que, depois de gerar a Verdade e t�-La conservado no seu cora��o, comunicou-A para sempre humanidade inteira.
Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 14 de Setembro Festa da Exalta��o da Santa Cruz de 1998, vig�simo ano de Pontificado.
(1) Na minha primeira enc�clica, a Redemptor hominis, j� tinha escrito: Torn�mo-nos participantes de tal miss�o de Cristo profeta, e, em virtude desta mesma miss�o e juntamente com Ele, servimos a verdade divina na Igreja. A responsabilidade por esta verdade implica tamb�m am�-la e procurar obter a sua mais exacta compreens�o, a fim de a tornarmos mais pr�xima de n�s mesmos e dos outros, com toda a sua for�a salv�fica, com o seu esplendor, com a sua profundidade e simultaneamente a sua simplicidade [N. 19: AAS 71 (1979), 306].
(2) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contempor�neo Gaudium et spes, 16.
(3) Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 25.
(4) N. 4: AAS 85 (1993), 1136.(5) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revela��o divina Dei Verbum, 2.
(6) Cf. Const. dogm. sobre a f� cat�lica Dei Filius, III: DS 3008.
(7) Ibid., IV: DS 3015; citado tamb�m em Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contempor�neo Gaudium et spes, 59.
(8) Const. dogm. sobre a revela��o divina Dei Verbum, 2.
(9) Jo�o Paulo II, Carta ap. Tertio millennio adveniente (10 de Novembro de 1994), 10: AAS 87 (1995), 11.
(10) N. 4.(13) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revela��o divina Dei Verbum, 4.
(14) Ibid., 5.(15) O Conc�lio Vaticano I, ao qual se refere a senten�a anteriormente citada, ensina que a obedi�ncia da f� exige o empenhamento da intelig�ncia e da vontade: Dado que o homem depende totalmente de Deus, enquanto seu Criador e Senhor, e a raz�o criada est� submetida completamente verdade incriada, somos obrigados, quando Deus Se revela, a prestar-Lhe, mediante a f�, a plena submiss�o da nossa intelig�ncia e da nossa vontade [Const. dogm. sobre a f� cat�lica Dei Filius, III: DS 3008].
(16) Sequ�ncia, na Solenidade do Sant�ssimo Corpo e Sangue de Cristo.
(17) Pens�es (ed. L. Brunschvicg), 789.(18) Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contempor�neo Gaudium et spes, 22.
(19) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revela��o divina Dei Verbum, 2.
(20) Pro�mio e nn. 1 e 15: PL 158, 223-224.226.235.
(21) De vera religione, XXXIX, 72: CCL 32, 234.(22) Ut te semper desiderando qu�rerent et inveniendo quiescerent �: Missale Romanum.
(23) Arist�teles, Metaf�sica, I, 1.(26) Cf. Jo�o Paulo II, Carta ap. Salvifici doloris (11 de Fevereiro de 1984), 9: AAS 76 (1984), 209-210.
(27) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decl. sobre a rela��o da Igreja com as religi�es n�o-crist�s Nostra �tate, 2.
(28) Desenvolvo, h� muito tempo, esta argumenta��o, tendo-a expresso em diversas ocasi�es: "Quem o homem, e para que serve? E que bem ou que mal pode ele fazer?" (Sir 18, 8) (...) Estas perguntas est�o no cora��o de cada homem, como bem demonstra o g�nio po�tico de todos os tempos e de todos os povos, que, quase como profecia da humanidade, reprop�e continuamente a s�ria pergunta que torna o homem verdadeiramente tal. Exprimem a urg�ncia de encontrar um porqu� da exist�ncia, de todos os seus instantes, tanto das suas etapas salientes e decisivas como dos seus momentos mais comuns. Em tais perguntas, testemunhada a raz�o profunda da exist�ncia humana, pois nelas a intelig�ncia e a vontade do homem s�o solicitadas a procurar livremente a solu��o capaz de oferecer um sentido pleno vida. Estes interrogativos, portanto, constituem a express�o mais elevada da natureza do homem; por conseguinte, a resposta a eles mede a profundidade do seu empenho na pr�pria exist�ncia. Em particular, quando o porqu� das coisas procurado a fundo em busca da resposta �ltima e mais exauriente, ent�o a raz�o humana atinge o seu v�rtice e abre-se religiosidade. De facto, a religiosidade representa a express�o mais elevada da pessoa humana, porque o �pice da sua natureza racional. Brota da profunda aspira��o do homem verdade, e est� na base da busca livre e pessoal que ele faz do divino [Alocu��o da Audi�ncia Geral de quarta-feira, 19 de Outubro de 1983, 1-2: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa, de 23 de Outubro de 1983), 12].
(29) [Galileu] declarou explicitamente que as duas verdades, de f� e de ci�ncia, n�o podem nunca contradizer-se, "procedendo igualmente do Verbo divino a Escritura santa e a natureza, a primeira como ditada pelo Esp�rito Santo, a segunda como executora fidel�ssima das ordens de Deus", segundo ele escreveu na sua carta ao Padre Benedetto Castelli, a 21 de Dezembro de 1613. O Conc�lio Vaticano II n�o se exprime diferentemente; retoma mesmo express�es semelhantes, quando ensina: "A investiga��o met�dica em todos os campos do saber, quando levada a cabo (...) segundo as normas morais, nunca ser� realmente
oposta f�, j� que as realidades profanas e as da f� t�m origem no mesmo Deus" (Gaudium et spes, 36). Galileu manifesta, na sua investiga��o cient�fica, a presen�a do Criador que o estimula, que Se antecipa �s suas intui��es e as ajuda, operando no mais profundo do seu esp�rito [Jo�o Paulo II, Discurso Pontif�cia Academia das Ci�ncias, a 10 de Novembro de 1979: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa, de 25 de Novembro de 1979), 6].
(30) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revela��o divina Dei Verbum, 4.
(31) Or�genes, Contra Celso 3, 55: SC 136, 130.(38) Santo Agostinho, Confessiones VI, 5, 7: CCL 27, 77-78.
(39) Cf. ibid. VII, 9, 13-14: CCL 27, 101-102.(40) Quid ergo Athenis et Hierosolymis? Quid academi� et ecclesi�? [De pr�scriptione hereticorum, VII, 9: SC 46, 98].
(41) Cf. Congr. da Educa��o Cat�lica, Instr. sobre o estudo dos Padres da Igreja na forma��o sacerdotal (10 de Novembro de 1989), 25: AAS 82 (1990), 617-618.
(42) Santo Anselmo, Proslogion, 1: PL 158, 226.(44) Cf. S. Tom�s de Aquino, Summa contra gentiles, I, VII.
(45) Cum enim gratia non tollat naturam, sed perficiat [Idem, Summa theologi�, I, 1, 8 ad 2].
(46) Cf. Jo�o Paulo II, Discurso aos participantes no IX Congresso Tomista Internacional (29 de Setembro de 1990): L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 28 de Outubro de 1990), 9.
(47) Carta ap. Lumen Ecclesi� (20 de Novembro de 1974), 8: AAS 66 (1974), 680.
(48) Pr�terea, h�c doctrina per studium acquiritur. Sapientia autem per infusionem habetur, unde inter septem dona Spiritus Sancti connumeratur [Summa theologi�, I, 1, 6].
(49) Ibid., II, II, 45, 1 ad 2; cf. tamb�m II, II, 45, 2.
(50) Ibid., I, II, 109, 1 ad 1, que cita a conhecida frase do Ambrosiaster, In prima Cor 12,3: PL 17, 258.
(51) Le�o XIII, Carta enc. �TERNI PATRIS (4 de Agosto de 1879): ASS 11 (1878-1879), 109.
(52) Paulo VI, Carta ap. Lumen Ecclesi� (20 de Novembro de 1974), 8: AAS 66 (1974), 683.
(53) Carta enc. Redemptor hominis (4 de Mar�o de 1979), 15: AAS 71 (1979), 286.
(54) Cf. Pio XII, Carta enc. Humani generis (12 de Agosto de 1950): AAS 42 (1950), 566.
(55) Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Primeira const. dogm. sobre a Igreja de Cristo Pastor TERNUS: DS 3070; Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 25c.
(56) Cf. S�nodo de Constantinopla, DS 403.(57) Cf. Conc�lio de Toledo I, DS 205; Conc�lio de Braga I, DS 459-460; Sisto V, Bula C�li et terr� Creator (5 de Janeiro de 1586): Bullarium Romanum 44 (Roma, 1747), 176-179; Urbano VIII, Inscrutabilis iudiciorum (1 de Abril de 1631): Bullarium Romanum 61 (Roma, 1758), 268-270.
(58) Cf. Conc. Ecum. de Viena, Decr. Fidei catholic�: DS 902; Conc. Ecum. Lateranense V, Bula Apostolici regiminis: DS 1440.
(59) Cf. Theses a Ludovico Eugenio Bautain iussu sui Episcopi subscript� (8 de Setembro de 1840): DS 2751-2756; Theses a Ludovico Eugenio Bautain ex mandato S. Congr. Episcoporum et Religiosorum subscript� (26 de Abril de 1844): DS 2765-2769.
(60) Cf. S. Congr. Indicis, Decr. Theses contra traditionalismum Augustini Bonnety (11 de Junho de 1855): DS 2811-2814.
(61) Cf. Pio IX, Breve Eximiam tuam (15 de Junho de 1857): DS 2828-2831; Breve Gravissimas inter (11 de Dezembro de 1862): DS 2850-2861.
(62) Cf. S. Congr. do Santo Of�cio, Decr. Errores ontologistarum (18 de Setembro de 1861): DS 2841-2847.
(63) Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a f� cat�lica Dei Filius, II: DS 3004; e c�n. 2-�1: DS 3026.
(64) Ibid., IV: DS 3015, citado em Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contempor�neo Gaudium et spes, 59.
(65) Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a f� cat�lica Dei Filius, IV: DS 3017.
(66) Cf. Carta enc. Pascendi dominici gregis (8 de Setembro de 1907): ASS 40 (1907), 596-597.
(67) Cf. Pio XI, Carta enc. Divini Redemptoris (19 de Mar�o de 1937): AAS 29 (1937), 65-106.
(68) Carta enc. Humani generis (12 de Agosto de 1950): AAS 42 (1950), 562-563.
(69) Ibid.: o.c., 563-564.(70) Cf. Jo�o Paulo II, Const. ap. Pastor Bonus (28 de Junho de 1988) arts. 48-49: AAS 80 (1988), 873; Congr. da Doutrina da F�, Instr. sobre a voca��o eclesial do te�logo Donum veritatis (24 de Maio de 1990), 18: AAS 82 (1990), 1558.
(71) Cf. Instr. sobre alguns aspectos da teologia da liberta��o Libertatis nuntius (6 de Agosto de 1984), VII-X: AAS 76 (1984), 890-903.
(72) Com sua palavra clara e de grande autoridade, o Conc�lio Vaticano I tinha j� condenado este erro, ao afirmar, por um lado, que, relativamente f� (...), a Igreja Cat�lica preconiza que uma virtude sobrenatural pela qual, sob a inspira��o divina e com a ajuda da gra�a, acreditamos que s�o verdadeiras as coisas por Ele reveladas, n�o por causa da verdade intr�nseca das coisas percebida pela luz natural da raz�o, mas por causa da autoridade do pr�prio Deus que as revela, o qual n�o pode enganar-Se nem enganar [Const. dogm. sobre a doutrina cat�lica Dei Filius, III: DS 3008; e c�n. 3-� 2: DS 3032]. E, por outro lado, o Conc�lio declarava que a raz�o nunca chega a ser capaz de penetrar [tais mist�rios], nem as verdades que formam o seu objecto espec�fico [ibid., IV: DS 3016]. Daqui tirava a seguinte conclus�o pr�tica: Os fi�is crist�os n�o s� n�o t�m o direito de defender, como leg�timas conclus�es da ci�ncia, as opini�es reconhecidas contr�rias doutrina da f�, especialmente quando est�o condenadas pela Igreja, mas s�o estritamente obrigados a consider�-las como erros, que apenas t�m uma ilus�ria apar�ncia de verdade [ibid., IV: DS 3018].
(73) Cf. nn. 9-10.(74) Const. dogm. sobre a revela��o divina Dei Verbum, 10.
(75) Ibid., 21.(77) Cf. Carta enc. Humani generis (12 de Agosto de 1950): AAS 42 (1950), 565-567.571-573.
(78) Cf. Carta enc. �TERNI PATRIS (4 de Agosto de 1879): ASS 11 (1878-1879), 97-115.
(79) Ibid.: o.c., 109.(82) Ibid., 22; cf. Jo�o Paulo II, Carta enc. Redemptor hominis (4 de Mar�o de 1979), 8: AAS 71 (1979), 271-272.
(83) Decr. sobre a forma��o sacerdotal Optatam totius, 15.
(84) Cf. Jo�o Paulo II, Const. ap. Sapientia christiana (15 de Abril de 1979), arts. 79-80: AAS 71 (1979), 495-496; Exort. ap. p�s-sinodal Pastores dabo vobis (25 de Mar�o de 1992), 52: AAS 84 (1992), 750-751. Vejam-se tamb�m algumas reflex�es sobre a filosofia de S. Tom�s: Discurso na Pontif�cia Universidade de S. Tom�s (17 de Novembro de 1979): L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 25 de Novembro de 1979), 1; Discurso aos participantes no VIII Congresso Tomista Internacional (13 de Setembro de 1980): L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 28 de Setembro de 1980), 4; Discurso aos participantes no Congresso Internacional da Sociedade S. Tom�s de Aquino sobre A doutrina tomista da alma (4 de Janeiro de 1986): L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 12 de Janeiro de 1986), 9. E ainda: S. Congr. da Educa��o Cat�lica, Ratio fundamentalis institutionis sacerdotalis (6 de Janeiro de 1970), 70-75: AAS 62 (1970), 366-368; Decr. Sacra theologia (20 de Janeiro de 1972): AAS 64 (1972), 583-586.
(85) Cf. Const. past. sobre a Igreja no mundo contempor�neo Gaudium et spes, 57.62.
(86) Cf. ibid., 44.(87) Cf. Bula Apostolici regimini sollicitudo, Sess�o VIII: Conc. Rcum. Decreta (1991), 605-606.
(88) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revela��o divina Dei Verbum, 10.
(89) S. Tom�s de Aquino, Summa theologi�, II-II, 5, 3 ad 2.
(90) A busca das condi��es, nas quais o homem faz por si pr�prio as primeiras perguntas fundamentais acerca do sentido da vida, do fim que lhe deseja dar e daquilo que o espera depois da morte, constitui para a Teologia Fundamental o pre�mbulo necess�rio, para que, tamb�m hoje, a f� possa mostrar plenamente o caminho a uma raz�o em busca sincera da verdade [Jo�o Paulo II, Carta aos participantes no Congresso Internacional de Teologia Fundamental por ocasi�o do 125o anivers�rio da promulga��o da Const. dogm. Dei Filius (30 de Setembro de 1995), 4: L'Osservatore Romano, (ed. portuguesa de 7 de Outubro de 1995), 10].
(91) Ibid., 4: o.c., 10.(92) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contempor�neo Gaudium et spes, 15; Decr. sobre a actividade mission�ria da Igreja Ad gentes, 22.
(93) S. Tom�s de Aquino, De C�lo 1, 22.(94) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contempor�neo Gaudium et spes, 53-59.
(95) S. Agostinho, De pr�destinatione Sanctorum 2, 5: PL 44, 963.
(96) Idem, De fide, spe et caritate, 7: CCL 64, 61.
(97) Cf. Conc. Ecum. de Calced�nia, Symbolum, definitio: DS 302.
(98) Cf. Jo�o Paulo II, Carta enc. Redemptor hominis (4 de Mar�o de 1979), 15: AAS 71 (1979), 286-289.
(99) Veja-se, por exemplo, S. Tom�s de Aquino, Summa theologi�, I, 16, 1; S. Boaventura, Coll. in Hex., 3, 8, 1.
(100) Const. past. sobre a Igreja no mundo contempor�neo Gaudium et spes, 15.
(101) Cf. Jo�o Paulo II, Carta enc. Veritatis splendor (6 de Agosto de 1993), 57-61: AAS 85 (1993), 1179-1182.
(102) Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a f� cat�lica Dei Filius, IV: DS 3016.
(103) Cf. Conc. Ecum. Lateranense IV, De errore abbatis Ioachim, II: DS 806.
(104) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revela��o divina Dei Verbum, 24; Decr. sobre a forma��o sacerdotal Optatam totius, 16.
(105) Cf. Jo�o Paulo II, Carta enc. Evangelium vit� (25 de Mar�o de 1995), 69: AAS 87 (1995), 481.
(106) Neste mesmo sentido, escrevi na minha primeira enc�clica, comentando a frase conhecereis a verdade, e a verdade tornar-vos-� livres do Evangelho de S. Jo�o (8, 32): Estas palavras encerram em si uma exig�ncia fundamental e, ao mesmo tempo, uma advert�ncia: a exig�ncia de uma rela��o honesta para com a verdade, como condi��o de uma aut�ntica liberdade; e a advert�ncia, ademais, para que seja evitada qualquer verdade aparente, toda a liberdade superficial e unilateral, toda a liberdade que n�o compreenda cabalmente a verdade sobre o homem e sobre o mundo. Ainda hoje, depois de dois mil anos, Cristo continua a aparecer-nos como Aquele que traz ao homem a liberdade baseada na verdade, como Aquele que liberta o homem daquilo que limita, diminui e como que despeda�a pelas pr�prias ra�zes essa liberdade, na alma do homem, no seu cora��o e na sua consci�ncia [Carta enc. Redemptor hominis (4 de Mar�o de 1979), 12: AAS 71 (1979), 280-281].
(107) Discurso de abertura do Conc�lio (11 de Outubro de 1962): AAS 54 (1962), 792.
(108) Congr. da Doutrina da F�, Instr. sobre a voca��o eclesial do te�logo Donum veritatis (24 de Maio de 1990), 7-8: AAS 82 (1990), 1552-1553.
(109) Escrevi na enc�clica Dominum et vivificantem, comentando Jo 16, 12-13: Jesus apresenta o Consolador, o Esp�rito da Verdade, como Aquele que "ensinar� e recordar�", como Aquele que "dar� testemunho" d'Ele; agora diz: "Ele vos guiar� para a verdade total". Este "guiar para a verdade total", em rela��o com aquilo que "os Ap�stolos por agora n�o est�o em condi��es de compreender", est� necessariamente em liga��o com o despojamento de Cristo, por meio da sua paix�o e morte de cruz, que ent�o, quando Ele pronunciava estas palavras, j� estava iminente. Mas, em seguida, torna-se bem claro que aquele "guiar para a verdade total" tem a ver n�o apenas com o scandalum crucis, mas tamb�m com tudo o que Cristo "fez e ensinou" (Act 1, 1). Com efeito, o mysterium Christi na sua globalidade exige a f�, porquanto ela que introduz o homem oportunamente na realidade do mist�rio revelado. O "guiar para a verdade total" realiza-se, pois, na f� e mediante a f�: obra do Esp�rito da verdade e fruto da sua ac��o no homem. O Esp�rito Santo deve ser em tudo isso o guia supremo do homem, a luz do esp�rito humano [n. 6: AAS 78 (1986), 815-816].
(110) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revela��o divina Dei Verbum, 13.
(111) Cf. Pontif�cia Comiss�o B�blica, Instr. sobre a verdade hist�rica dos Evangelhos (21 de Abril de 1964): AAS 56 (1964), 713.
(112) � claro que a Igreja n�o pode estar ligada a qualquer sistema filos�fico ef�mero; aquelas no��es e termos que, segundo o consenso geral, foram compostos ao longo de v�rios s�culos pelos doutores cat�licos para se chegar a um certo conhecimento e compreens�o do dogma, sem d�vida que n�o se apoiam sobre fundamento t�o caduco. Apoiam-se, ao contr�rio, em princ�pios e no��es ditadas por um verdadeiro conhecimento da cria��o; e, para deduzirem estes conhecimentos, a verdade revelada, como se fosse uma estrela, iluminou a mente humana por meio da Igreja. Por isso, n�o h� de que maravilhar-se se alguma destas no��es acabou n�o apenas por ser usada em Conc�lios Ecum�nicos, mas foi a� de tal modo ratificada que n�o l�cito abandon�-la [Carta enc. Humani generis (12 de Agosto de 1950): AAS 42 (1950), 566-567; cf. Comiss�o Teol�gica Internacional, Doc. Interpretationis problema (Outubro de 1989): Enchiridion Vaticanum, XI, nn. 2717-2811].
(113) Quanto ao pr�prio significado das f�rmulas dogm�ticas, este permanece, na Igreja, sempre verdadeiro e coerente, mesmo quando se torna mais claro e melhor compreendido. Por isso, os fi�is devem rejeitar a opini�o segundo a qual as f�rmulas dogm�ticas (ou uma parte delas) n�o podem manifestar exactamente a verdade, mas apenas aproxima��es vari�veis que, de certa forma, n�o passam de deforma��es e altera��es da mesma [S. Congr. da Doutrina da F�, Decl. sobre a defesa da doutrina cat�lica acerca da Igreja Mysterium Ecclesi� (24 de Junho de 1973), 5: AAS 65 (1973), 403].
(114) Cf. Congr. S. Officii, Decr. Lamentabili (3 de Julho de 1907), 26: ASS 40 (1907), 473.
(115) Cf. Jo�o Paulo II, Discurso na Pontif�cia Universidade de S. Tom�s (17 de Novembro de 1979), 6: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 25 de Novembro de 1979), 8.
(116) N. 32: AAS 85 (1993), 1159-1160.(117) Cf. Jo�o Paulo II, Exort. ap. Catechesi tradend� (16 de Outubro de 1979), 30: AAS 71 (1979), 1302-1303; Congr. da Doutrina da F�, Instr. sobre a voca��o eclesial do te�logo Donum veritatis (24 de Maio de 1990), 7: AAS 82 (1990), 1552-1553.
(118) Cf. Jo�o Paulo II, Exort. ap. Catechesi tradend� (16 de Outubro de 1979), 30: AAS 71 (1979), 1302-1303.
(119) Cf. ibid., 22: o.c., 1295-1296.(122) Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a f� cat�lica Dei Filius, IV: DS 3019.
(123) Ningu�m pode tratar a teologia como se fosse uma simples colect�nea dos pr�prios conceitos pessoais; mas cada um deve ter a consci�ncia de permanecer em �ntima uni�o com aquela miss�o de ensinar a verdade, de que respons�vel a Igreja [Jo�o Paulo II, Carta enc. Redemptor hominis (4 de Mar�o de 1979), 19: AAS 71 (1979), 308].
(124) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decl. sobre a liberdade religiosa Dignitatis human�, 1-3.
(125) Cf. Exort. ap. Evangelii nuntiandi (8 de Dezembro de 1975), 20: AAS 68 (1976), 18-19.
(126) Const. past. sobre a Igreja no mundo contempor�neo Gaudium et spes, 92.
(127) Cf. ibid., 10.(128) Pr�logo, 4: Opera omnia, t. V (Floren�a 1891), 296.
(129) Cf. Decr. sobre a forma��o sacerdotal Optatam totius, 15.
(130) Cf. Jo�o Paulo II, Const. ap. Sapientia christiana (15 de Abril de 1979), arts. 67-68: AAS 71 (1979), 491-492.
(131) Jo�o Paulo II, Discurso na Universidade de Crac�via, por ocasi�o dos 600 anos da Alma Mater Jaghel�nica (8 de Junho de 1997), 4: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 21 de Junho de 1997), 6.
(132) 'e noer� tes p�steos tr�peza [Pseudo-Epif�nio, Homilia em louvor de Santa Maria M�e de Deus: PG 43, 493] .